Então, Feliz Natal

2015-12 - Marina dia 14- Chez Abuelita - CorteA vida vem em ondas como o mar, como disse Vinicius, e Lulu Santos copiou – ou citou, vá lá. E em dezembro as multidões nas calçadas das grandes vias das cidades parecem marés de Natal, como disse Paul Simon, e eu a cada mês de dezembro me lembro.

As marés de Natal no Brasil de 2015, afundado na recessão, com desemprego e inflação altíssimos, não têm sido tão fortes quanto eram no passado, mas eu pensava na canção de Paul Simon, como sempre penso nos dezembros, quando, na segunda-feira, três dias antes da Noite Obrigatoriamente Feliz, andei pela Paulista, primeiro nas Livrarias Cultura do Conjunto Nacional, atrás de um presente bem genérico para o amigo oculto fechado, em que você não sabe quem pegará seu presente, e depois na 2001 de duas estações de metrô depois, para ajudar a saquear aquilo que foi o maior acervo de filmes à disposição das pessoas que já houve neste país, e agora vive seus últimos dias.

Quando estava voltando para casa, depois de mais de uma hora à procura de um livro na Cultura, e depois de mais de uma outra hora de sofrimento e compras na 2001, carregado de pacotes e equilibrando tudo embaixo de um guarda-chuvas chinês de dezreal acabado de ser comprado, tocou no iPhone “River”, de Joni Mitchell.

Não há como fugir: a vida vem em ondas como o mar, como genialmente percebeu o Lulu Santos. Quer dizer, o Vinicius, o Lulu só citou – ou copiou?

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“River”, belíssima, emocionante, não é propriamente uma canção anti-natalina. E aqui me permito citar a mim próprio, eu que adoro citar todo mundo.

Algum tempo atrás, em outro mês de dezembro, escrevi que “River” é “um lamento de quem fez besteira contra a relação: ‘Sou egoísta e sou triste, agora já foi, perdi o melhor amor que podia ter tido’. Mas ela (Joni Mitchell, a autora, a narradora) quis justapor a tristeza com o período do ano em que é necessário, é urgente, é estressantemente obrigatório ser alegre. E então, suavemente, ela colocou as notas de “Jingle Bells” abrindo e fechando a canção: ‘O Natal vem chegando, estão cortando árvores, estão reunindo as renas e cantando canções de alegria e paz. Ah, gostaria de ter um rio no qual eu pudesse fugir. Mas não neva aqui, fica um belo verde. Gostaria de ter um rio tão grande que eu pudesse ensinar meus pés a voar.’ Além de tudo, uma canadense exilada se confessando um tanto pouco à vontade em terra mais quente, que teima em ser verde em vez de branca-barrenta.”

Num dezembro aí do passado, publiquei um texto do qual extraí esse trecho aí acima, ao qual dei o título de “Uma suave vingança contra a insanidade natalina”, com a linha fina “Belíssima canção ajuda a remar contra a maré da alegria obrigatória”. Eu abria meu texto assim:

“Todo mundo que se irrita com Natal (e o número é muitíssimo maior do que se poderia imaginar) deveria ouvir Madeleine Peyroux e k.d. lang cantando “River”. É uma vingança suave, doce, melancolicamente doce, contra essa insanidade de hordas de pessoas fazendo compras freneticamente, freneticamente com a necessidade básica, urgente, absurda, estressante, de se mostrar feliz.”

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Não foi o único texto anti-natalino que escrevi e publiquei neste site. O mais virulento de todos, creio, publiquei em dezembro de 2010, e republiquei nos dezembros seguintes. Tinha o título “Ainda por cima inventamos o Natal”, e começava assim:

“Como se não bastasse tudo o mais, ainda por cima inventamos o Natal. Como se não bastassem o câncer, a aids, o enfarte, a proibição de fumar, de beber, de comer sal, gordura, tudo o que tem gosto e dá prazer. A dor de dentes, a dor nas costas, a hipertensão, o triglicérides, o colesterol, a miopia, o astigmatismo, o enfisema, o glaucoma, a hemorróida, a herpes. Como se não bastassem a má distribuição das riquezas, a nojenta existência de milionários, a maldita existência de miseráveis, o capitalismo, a competição, a inveja, o mau caratismo, a sem-vergonhice, o chefe pentelho, o subalterno preguiçoso ou inepto. Como se não bastassem Napoleão, Stálin, Hitler, Mussolini, Fidel, Chávez, Evo, Lula, Marco Aurélio Garcia, Marta Suplicy, José Genoíno, Sarney, Jáder, Roriz, Bush, Thatcher.”

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zzdetalhe novaBoa parte dos Natais da minha vida, passei em festas/reuniões organizadas por Suely, a mãe da minha filha. Suely era gregária, e mansamente matriarca centralizadora: sem fazer qualquer esforço, atraía todos para voltear em torno dela. Adorava festa, adorava Natal, e todos íamos para onde ela determinava que fôssemos. Enquanto nossa filha crescia, nos reuníamos sempre na casa de Suely, mesmo e talvez especialmente depois que Fernanda passou a morar comigo e com Mary, a partir acho que dos 14 anos.

Para minha filha assim como para mim, Natal era a cara da mãe dela – e nada foi mais natural que, após a morte de Suely, em junho de 2010, Fernanda passasse a ver Natal como uma coisa pesada, ruim, triste.

Foi só quando chegou Marina que minha filha conseguiu ver de novo o Natal como uma coisa alegre, festiva.

Marina parece ter pelo Natal, por todos os símbolos de Natal, o amor que a avó dela tinha. Como Suely, Marina é festeira, gregária – e gosta especialmente dos símbolos relacionados a Natal.  

Filha de Suely-Chiquita Bacana, minha filha incorporou – talvez à força, a fórceps – a coisa de ser a pessoa que junta os parentes no Natal.

Este Natal agora será o terceiro de Marina, embora ela ainda não tenha feito três anos, o que é uma questão aritmética séria para mim, mas isso é o de menos.

O que importa mesmo é que, quando tocou “River” no meu ouvido, eu bem no meio da maré do Natal na Paulista, não senti uma náusea anti-natalina, como sentia em dezembros passados.

Pensei que Marina está adorando tudo, e a mãe dela está organizando a festa, exatamente como a mãe dela fazia.

E – desta vez para citar Milton Nascimento – a vida é isso aí.

22 de dezembro de 2015

9 Comentários para “Então, Feliz Natal”

  1. È Sérgio por Sérgio.
    Belo texto, abandonei por instantes a Rádio Noblat e escutei “River” uma canção ‘boi com abóbora’.

    Voltei ao texto e achei primorosa a fase do autor e a frase escrita em outro natal:
    “Como se não bastasse tudo o mais, ainda por cima inventamos o Natal…Como se não bastassem a má distribuição das riquezas, a nojenta existência de milionários, a maldita existência de miseráveis, o capitalismo, a competição, a inveja, o mau caratismo, a sem-vergonhice, o chefe pentelho, o subalterno preguiçoso ou inepto.”

    O colonialismo cultural me fez lembrar as palavras do irreverente Dylan:
    “É uma tragédia que 35 milhões de pessoas neste país (os EUA) – sendo 12 milhões de crianças – costumam ir para a cama com fome e acordem no dia seguinte sem saber quando vão comer novamente”. ditas por ocasião do lançamento do seu trigésimo álbum com canções natalinas.

    O natal é a data de expressar felicidade, não importa se é cultura colonialista, é nesta época que os seres gregários tornam-se importantes.

    Pelo texto notei que se foi uma gregária, adormecida uma jovem de 14 anos ressurgiu a partir do nascimento de novo ser gregário. O show da vida.

    Independente da irreverência crítica e do nefasto e irreversível colonialismo a data festiva deve agregar os melhores sentimentos e desejos de felicidade.

    Graças a agregadora Marina nossa náusea é momentaneamente arrefecida.

    Melhor escutar a chatérrima “Jingle Bells” do que a dor de cotovelo de “River”, lamento de quem fez besteira contra a relação.

    Ou ainda, o colonizador Dylan em “Christmas In The Heart” álbum de 2009.

    FELIZ NATAL a Marina, aos pais, aos tios, aos avós. HO, HO, HO.

  2. Aos amigos, Servaz, Valdir e Luiz Carlos.

    “Família é prato difícil de preparar.
    São muitos ingredientes.
    Reunir todos é um problema…
    Não é para qualquer um.
    Os truques, os segredos, o imprevisível.
    Às vezes, dá até vontade de desistir…
    Mas a vida… sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite.
    O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares.
    Súbito, feito milagre, a família está servida.
    Fulana sai a mais inteligente de todas.
    Beltrano veio no ponto; é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade.
    Sicrano, quem diria?
    Solou, endureceu, murchou antes do tempo.
    Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante.
    Aquele, o que surpreendeu e foi morar longe.
    Ela, a mais apaixonada.
    A outra, a mais consistente…
    Já estão aí? Todos? Ótimo!
    Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados.
    Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola.
    Não se envergonhe de chorar.
    Família é prato que emociona.
    E a gente chora mesmo.
    De alegria, de raiva ou de tristeza.
    Primeiro cuidado:
    temperos exóticos alteram o sabor do parentesco.
    Mas, se misturados com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente e nos parecem estranhas ao paladar, tornam a família muito mais colorida, interessante e saborosa.
    Atenção, também, com os pesos e as medidas.
    Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto:
    é um verdadeiro desastre.
    Família é prato extremamente sensível.
    Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido.
    Outra coisa:
    é preciso ter boa mão, ser profissional.
    Principalmente na hora que se decide meter a colher.
    Saber meter a colher é verdadeira arte.
    Às vezes, o ídolo da família, o bonzinho, o bola cheia que sempre ajudou, azedou a comida só porque meteu a colher.
    O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita.
    Bobagem!
    Tudo ilusão!
    Família é afinidade, é à Moda da Casa.
    E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
    Há famílias doces.
    Outras, meio amargas.
    Outras apimentadíssimas.
    Há também as que não têm gosto de nada. Seria assim, um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha.
    Seja como for,
    família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo.
    Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
    Enfim, receita de família não se copia, se inventa.
    A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia.
    A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel.
    Muita coisa se perde na lembrança.
    O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer.
    Se puder saborear, saboreie.
    Não ligue para etiquetas.
    Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro.
    Aproveite ao máximo.
    Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete!

    Família:
    Feliz quem tem, sabe curtir, aproveitar e valorizar…..!

    Feliz Natal pra vcs e sua família!

    desejo do MILTINHO

  3. Muito bom! Tanto a esplanação toda do Servaz quanto o texto do Miltinho sobre família e Natal! É isso aí mesmo!
    Família, como toda comida por melhor que seja, também azeda e estraga às vezes… mas é a NOSSA família! que amamos com todos os defeitos e que em muitas ocasiões temos que “engolir” com um copo d’água ou uma boa taça de vinho.
    Desejo que o espírito do Natal esteja presente em todas as famílias, unidas ou não!
    Um Feliz Natal a doce Marina, sua mãe e avós! E ao Miltinho e sua família!

  4. É isso, chefia. A vida é o que ela é. Nem sempre o que planejamos. Com netas, então…
    Abração com bênçãos a você e aos seus.
    Saudadona.

    Pedro

  5. Hum, v. está escrevendo cada vez melhor, unindo densidade e informação em frases admiráveis neste texto a propósito do nascimento do meu (não sei se também o teu) Salvador. Muito obrigado. Tenha-me não apenas como teu admirador, mas também como uma pessoa merecedora de teu afeto e de tua amizade. Abraçaço, à la Caetano. E eis que estou a ouvir o próprio em meu iPod naquela faixa em que concordamos no gênio do flautista que o acompanha em London, London, e cujo nome continuo a ignorar. V. descobriu?

  6. Muitíssimo obrigado pelos comentários, caríssimos Miltinho, Márcia, Pedro e Melchíades!
    Mel, não mereço isso tudo, mas agradeço imensamente! E não, não descobri ainda quem toca a maravilhosa flauta em “London, London”!
    Grande abraço.
    Sérgio

  7. Acho que crianças mudam mesmo a forma como os adultos vêem o Natal. Eu nunca gostei, sempre achei triste, e já passei Natais tristíssimos. Hoje lido melhor com isso, mas depende do ano. A obrigatoriedade da reunião de pessoas muitas vezes desagradáveis, sempre me incomodou.
    Só sei que quando eu era criança, sentia alguma coisa diferente no ar desde o início de dezembro, era como se todos ficassem mesmo mais amáveis. Até o “cheiro” do mês de dezembro era diferente. Mas com o tempo essa sensação se perdeu, talvez por eu ter crescido, talvez por que hoje só se pense em consumismo, só se fale no tal do Papai Noel (sem falar na comilança desenfreada, no desperdício, e na obrigatoriedade de ter diferentes tipos de carne na mesa. Não se contentam mais só com o peru). Dio santo!
    Enfim, para os que são cristãos, verdadeiramente, o Natal acontece todos os dias, quando abrimos nosso coração para o amor ao próximo.

    Que bom que a náusea anti-natalina passou e que Marina veio trazer a volta da comemoração do Natal em família.

    PS: pena que a segunda foto da Marina tenha ficado meio tremida.
    PS2: mesmo não sendo uma entusiasta do Natal, gosto de ouvir as músicas cantadas por Sinatra e Dean Martin, referentes ao tema, com direito à playlist. Na voz do meu canalha preferido, até a chatinha Jingle Bells fica legal, e é impossível não cantar junto (e ouvir de novo) o “Jin jin-jingle bells, jingle all the way. Oh, what fun it is to ride in a one-horse open sleigh … I love those happy j i n g l e bells”…
    PS3: como super fã do Lulu, que um dia fui, tenho que dizer que ele não citou nem copiou a frase de Nelson Motta. Eles fizeram a música em parceria: letra do Motta, melodia do Lulu. =)

    Vou deixar o link para a música aqui:
    https://www.youtube.com/watch?v=p07T4dlw2cc

  8. Eita, uma vez levei uma bronca sua no Twitter por causa dessa frase do Vinicius de Moraes, e pelo jeito não aprendi a lição. hahaha
    Só me lembrei disso hoje, do nada, não devo ter prestado atenção quando li o texto (é preciso relevar, visto o horário em que escrevi o comentário anterior).
    Mas então ‘tá aí: a frase é do “poetinha” (nunca um apelido serviu tanto, porque para mim foi um poetinha mesmo, as in, poeta menor), e não do Nelson Motta. Mas é que toda vez você culpa o Lulu Santos… Se for pra culpar alguém pela frase “emprestada”, culpe o Motta, foi ele quem fez a letra da música.

  9. Tudo que se vê não é
    Igual ao que a gente viu a um segundo
    tudo muda o tempo todo no mundo

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