Falo por mim, mas sei que repórteres adoram quando acham (ou lhes cai no colo) um personagem sob medida para sua matéria. Agora, esse personagem é como diamante. A menor imperfeição compromete a qualidade.
Não sei se estou sendo claro… Dou um exemplo.
Fui cobrir há pouco, para o Diário do Comércio, a apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira, na Sala São Paulo. Na platéia estavam alunos que tocam em bandas ou fanfarras, em suas escolas, na periferia. Adolescentes ou quase isso. A matéria já estava boa, porque a maior parte deles nunca tinha ido a um concerto.
Aplaudiam tudo, até instruções sobre as saídas de emergência. À sua maneira. Gritaria, assobios, zoada, como se estivessem num programa de auditório da TV. Os músicos foram ruidosamente ovacionados, à medida em que o maestro Roberto Minczuk os apresentava. Podia-se ver em seus rostos o prazer que sentiam com aquilo (um cello me disse, depois, que nunca recebera tamanha aclamação). Na vez dos metais, houve uma explosão. Afinal são instrumentos de fanfarra.
A matéria ia muito bem. Minczuk havia explicado como o maestro rege a orquestra. Um, dois, três, quatro… Mostrava os tempos com a mão. Entra no palco o britânico James Judd, que conduziria o concerto. Então, Minczuk pergunta se alguém da platéia gostaria de reger a orquestra. Inúmeros braços se erguem, mas ele praticamente pesca um menino que estava na primeira fila.
Um pretinho bonito, bochechudo, como uma criança de New Orleans. Dez anos. O menino sobe ao palco, e daí para o pódio, de onde os maestros regem. Pega a batuta. À sua frente está a orquestra completa, 80 músicos. Um menino de uma escola da periferia, veio no ônibus. Ergue a batuta e, repetindo o movimento mostrado por Minczuk, começa a reger.
Os acordes da Pastoral de Beethoven tomam a sala. O bom maestro Judd, ao lado do pódio, coadjuva o “titular” discretamente. Durou pouquíssimo, mas o magia se dera. O menino ficou meio atrapalhado com a ovação, que enchia os ouvidos; agradeceu, e saiu de cena.
Seguiu-se o concerto, mais de uma hora. Embalou a platéia de tal de forma que, quando terminou, muitos dos alunos cochilavam, ou dormiam a sono solto. Este repórter (ou a nossa reportagem) estava sentado numa fileira no meio da platéia, junto com alunos de uma das escolas. Agiu rápido. Havia colhido as expectativa daquele grupo, antes do espetáculo. Agora, teria que ir com o irrespirável, “então, o que você achou?”. Recurso óbvio, para a matéria?
Concordo, mas como iria imaginar que um menino regeria a sinfônica?
Falar nele, não despreguei olho. Vai que desaparecesse com seu grupo. Liquidei rapidamente as entrevistas e saí apressado. Andava e imaginava a página com a matéria, uma foto bem aberta do menino regendo. Ingredientes para o título: Fulano, dez anos, rege a sinfônica… Filho de pedreiro rege… Pedreiro, chacareiro?… Da periferia… Cheguei.
Conversa e tal, nome? Pedro Silvestre. Onde mora, como é o lugar? etc.. E vamos ao ponto.
– Com que seu pai trabalha?
– É advogado.
– Advogado?
– Sim, ele é advogado.
Sim, é advogado, e lá se vai um bocado da graça da matéria. Diamante defeituoso.
Sempre, um menino que regeu uma orquestra dá samba, isto é, dá boa chamada na capa, com foto. Dentro, página limpa. Grande foto, bom título.
Mas não é a mesma coisa.
* * *
Há muitos anos fui a Varginha, porque o juiz da cidade mineira havia inocentado um jovem que roubara uma galinha. Dera a sentença em versos. Dizia não ser possível punir um simples ladrão de galinha num País com tanta roubalheira.
Boa matéria. Entrevistado o juiz, eu e meu colega fotógrafo fomos atrás do beneficiado. Morava em uma cidade vizinha, singela, pobre, com a igrejinha no alto do morro. Bate aqui, busca lá, conseguimos achar o mineirinho.
Rapaz simples, meio sem-jeito. Entro com a pergunta:
– O que achou desse juiz, que te livrou da prisão?
Meus ouvidos se prepararam para algo como “Moço bão, sô”. Mas a resposta foi:
– Legal pra caramba.
Trincou o diamante.
Julho de 2010