Nós conversávamos

Nos primeiros dias de abril de 1991, terminada a Guerra no Golfo Pérsico, imaginei que a convivência forçada com os massacres que desabavam – quase instantaneamente – da crueza dos jornais televisivos para o aconchego de minha sala diminuiria um pouco. Ao menos um pouco.

Tinha me esquecido dos curdos.

Nestes últimos dias, os tortuosos e misteriosos caminhos da memória têm conduzido meu coração machucado e meus olhos desesperançados ao encontro de lembranças de outros tempos, vividos em família. Tempos de paz.

A saudade me lembra que crescemos numa casa em que sempre se leu. Uma fazenda, no interior de Minas, onde convivíamos com uns poucos jornais – Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Jornal –, algumas revistas – O Cruzeiro, A Cigarra, Alterosa, Careta, Vida Doméstica – e muitos livros.

Os livros nos esperavam, cheios de surpresas, quando, duas vezes por ano, a caminho das férias, nos livrávamos do internato. Minha irmã mais velha e eu em São João del-Rei, meus dois irmãos em Lavras, cidades pertencentes a uma região com nome de poema: Campo das Vertentes.

A viagem de trem, sonolenta, preguiçosa, sacolejando por campos conhecidos e vertentes sinuosas, terminava em uma estação às margens do Rio das Mortes, águas pardas, cor de doce de leite em tacho de cobre. Açúcar mascavo.

A estação com nome sagrado – Nazareno – aprendido e apreendido no colégio das freiras, era lentamente deixada pra trás, e a balsa, preguiçosa como pensamento na hora do sono, nos levava ao encontro dos cavalos, na margem de lá.

Meus irmãos escalavam os cavalos mais imponentes, minha irmã e eu pensávamos que ainda bem que o tempo passa.

Pés firmes nos estribos, todos puxávamos as rédeas e, duas horas e duas léguas – 12 quilômetros – depois, deslumbrados de encantamento e amarfanhados de saudade, tínhamos a primeira visão de nossos tempos de paz. Debruçada em uma das muitas e enormes janelas da fazenda, minha mãe, olhos aflitos de saudade e atentos de encantamento, espiava, vigilante, a estrada que lhe traria a visão do primeiro filho, do segundo, ah!

Na fazenda, de onde quase nunca saíamos, conversávamos, pescávamos. Conversávamos, ouvíamos rádio. Conversávamos, andávamos a cavalo. Conversávamos, almoçávamos, jantávamos. Conversávamos, líamos. Conversávamos, conversávamos.

Os assuntos, três. Cinema –ah, O Gavião e a Flecha, Quo Vadis?, Joana d’Arc –, música – ah, Carlos Gardel, Gregório Barrios, Dorival Caymmi, Orlando Silva, Frank Sinatra, Doris Day  – e  livros.

Alguns autores preferidos, um idolatrado: Karl May, alemão que, sem nunca haver saído de Dresden, na Saxônia, nos ensinava a viver as histórias que contava. Histórias ora de tribos de índios do oeste norte-americano, ora de tribos nômades da Ásia e do Oriente.

Esse homem, que emocionou mais de uma geração, criando o bravo cacique apache Winnetou, não se esqueceu dos curdos, narrando aventuras inesquecíveis num volume chamado Pelo Curdistão Bravio, que líamos e relíamos.

Nesse abril de 91, tanto, tanto tempo depois, reencontro, na tela mágica da televisão, as montanhas geladas da Ásia. Elas estão repletas de curdos desesperados e famintos, todos tentando se abrigar em minha sala paulistana.

Então eu me pergunto, na solidão dos pensamentos familiares, se meus irmãos estarão, como essa irmã distante, percorrendo os caminhos misteriosos e tortuosos da memória. Caminhos de paz.

Caminhos capazes de trazer de volta não apenas a lembrança do Curdistão, sempre bravio, mas também a daquele pai e daquela mãe fazendeiros – e leitores – que, pelo menos duas vezes por ano, antes das férias de julho e de dezembro, deixavam a fazenda, a caminho de São João del-Rei.

Na volta, após alguns dias de compras pela cidade durante o dia e outras tantas sessões de cinema à noite – ah, Oscarito, Grande Otelo, Tonia Carrero – forravam o fundo das malas com os livros novos, comprados na única livraria da cidade – O Cachimbo Turco -, administrada com carinho por um velho casal de portugueses, Sr. Raul e D. Adelina. Casal sem filhos.  Pais de livros, filhos legítimos e adotivos.

Livros comoventes, esperados com alegria, folheados com ansiedade, lidos com paixão. E lembrados com saudade, quando a tevê insiste em contar histórias de tempos que – esses, sim – gostaríamos de poder esquecer. Tempos de guerra.

14/4/1991

As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.

Um comentário para “Nós conversávamos”

  1. Boa tarde!
    sou pesquisadora na área de história da educação, na Universidade Federal de São João del-Rei e tenho interesse em saber mais sobre a loja Cachimbo Turco. Meu objeto de pesquisa é a revista Careta e já que ela era distribuida pela livraria, talvez a autora da memória possa me ajudar a trazer algo mais para minha pesquisa e para a história de São João del-Rei.
    Grata pela atenção,
    Fernanda Frazão
    Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação/UFSJ

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