Há oito anos – desde dois mil e dois – recebo um telefonema anual. Um só, de Salvador. Em dezembro. Curtinho, combinando duas coisas. Três, quando há exagero.
A primeira vez me surpreendeu. A segunda também. A terceira.
Depois, passei a esperar a voz conhecida e amiga, sotaque mineiro não influenciado pelos quinze anos vividos em São Paulo, antes dos oito baianos.
Deveria me espantar, fidelidade espanta. Mas, mais que espantar, faz bem.
Ouvir meu amigo dizer que está na hora de vir a São Paulo rever algumas pessoas me faz bem. Faço parte delas, bem enorme.
Vamos almoçar no Famiglia Mancini, ele perguntou e afirmou, a primeira vez, há oito anos.
Havia morado na Rua Avanhandava, a redação da revista era na Maria Antônia, pertinho, ia a pé. Queria recordar a rua, os arredores. Bares, botecos, cinemas, teatros, boates, placas.
Em seguida, meu amigo sugeriu e afirmou: poderíamos visitar um antigo professor, que também morava por ali.
— Lembra dele?
Me lembrava. Só não sabia que andava adoentado. Obrigado a trabalhar de casa, para os jornais e as rádios habituais. Havíamos convivido em Belo Horizonte, tempos idos.
Nos anos seguintes, sem perguntas nem afirmações, todas as vezes que o telefone tocou e o sotaque mineiro, voz firme, me encontrou, sabíamos que dois prazeres seriam cumpridos: almoçar na velha rua e visitar o velho amigo.
Neste ano, nestes dias, nesta semana, houve exagero.
Na véspera do almoço, eu poderia – e gostaria – de ir a Campinas, outro almoço? Casa do irmão, gostaria?
O irmão é outro amigo, sem temporadas baianas. Diretamente de Minas pra Campinas, após uns tempos na França, estudos.
Horário combinado, meio dia, terminal Tietê, hora e meia de viagem, calor insuportável não fosse o afeto dos reencontros. Do reencontro anual, duas coisas, às vezes três.
Campinas, rodoviária nova, ele disse. Olhei em volta, sem referências. Não conheci a anterior, sem referências.
Casa do irmão mais velho, que me conheceu quando tinha doze anos, nos bancos escolares. Colégio de Aplicação da UFMG, Belo Horizonte. Naquele tempo, início dos anos sessenta, a meninada estudava francês no curso ginasial que, de lá pra cá, muda – periodicamente – de nome e de currículo. E piora.
Naquele tempo, estudava-se francês, precisava-se de uma professora, lá fui eu me apaixonar pelos alunos.
Alguns – e algumas – viraram afilhados de casamento. Muitos, inúmeros, personagens de livros, contos, crônicas.
Houve quem se casasse na família, convívio mais próximo. Houve quem ficasse famoso, criando instrumentos absolutamente originais e composições infinitamente elaboradas.
Me lembro de todos. Alguns sumiram. Se torcida adiantar, reaparecem.
Houve um que se foi, definitivamente. Traído pela moto. Irmão mais novo do que o que me telefona da Bahia, que é mais novo que o de Campinas.
Três irmão, três alunos, três amigos.
Uma vez, anos oitenta, escrevi um livro que vivia me passando pela cabeça e pelo coração.
História passada nas salas de aula, tempos difíceis, início do regime militar.
Terminado o livro, quando pensava a quem dedicá-lo – todos os alunos? Uma determinada turma? –, soube que o irmão mais novo não mais existia. O livro, “com a certeza de que aluno não deve morrer”, está dedicado a ele.
No ônibus de volta – Campinas deixada pra trás – o irmão do meio e eu relembramos o almoço, a família, o vinho, o afeto.
Em silêncio, relembro as orquídeas, as camélias. O pé de mirra, que nunca tinha visto. E que dá uma flor branca, só vi na foto, não é tempo.
Saída do metrô, até amanhã, rua Avanhandava, casa do antigo professor, autor de livros de óperas.
Durmo pensando como tinha – e tem – razão quem disse que “amigo é coisa pra se guardar”.
No dia seguinte, a velha rua, antes sem cor, toda renovada. O restaurante, antes resumido, todo espalhado.
Vinho, confidências, lembranças, amarguras, alegrias, solidariedades, incertezas, vinho. Certeza, uma só. Amigo é pra se guardar.
Antes da despedida até o próximo ano, a visita ao antigo professor.
No caminho, sol forte, passos lentos, meu aluno e amigo, irmão mais novo do irmão mais velho, irmão mais velho do mais novo, que a moto levou, repete uma preocupação do almoço.
O ex-professor, companheiro de tantas conversas e trabalhos, não estava atendendo seus telefonemas. Nem respondendo as cartas.
Na portaria, não, não mora mais aqui. Há uns seis meses. Passou mal, foi levado. Internado não se sabe onde. Os discos ninguém levou. Nem os livros.
Nosso amigo, crítico de música erudita, autor de tantos livros de óperas, morava sozinho, locomovia-se com dificuldade, muita.
Meu aluno/amigo, adeus, até o ano que vem, foi pro aeroporto. Antes, me entregou um CD, embrulho de presente. Se eu reencontrar o professor, que lhe entregue.
Sozinha, diante do computador, começo a sonhar com uma crônica que repita, à exaustão, que “amigo é coisa pra se guardar”. Bem no fundo. Da alma, do coração, do peito. Bem no fundo mais fundo.
Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma, em dezembro de 2010.