No começo dos anos 60, numa Brasília vermelha de tanto barro, eu e ele batíamos bons papos num botequinho de vigésima categoria. O camarada, mineiro, tinha chegado à cidade como peão, pegara em enxadas e carregara pedras, porém, na época, já funcionava como mestre-de-obras. Ficamos nos conhecendo porque, indo à cidade com certa freqüência fazer reportagens sobre as obras da cidade, ele sempre me ajudava com um jipe incrível, que enfrentava todo tipo de lama, me levando aos lugares onde precisava chegar. Num janeiro altamente chuvoso, com os prédios do Congresso ainda em construção, eu necessitava dar um pulo nas proximidades. Não fosse o heróico veículo do meu amigo, talvez tivesse voltado para São Paulo no mesmo dia.
Nos anos seguintes encontrei o formidável personagem muitas vezes. E, afinal, a cada encontro, não podia deixar de perceber que a figura melhorava de vida de forma fulminante. Tanto que nem me espantei, alguns anos depois, ao saber que possuía sua própria construtora.
Quando inaugurou a suntuosa mansão onde mora até hoje, no Lago Sul, fui à festa. Precisando sair cedo cheguei antes da maioria dos convidados e, como o anfitrião gostava de mim, ficamos conversando, sozinhos num canto, tomando uísque.
– Você já ouviu falar da família Benedict? – ele, de repente, me perguntou.
– Bom – tentei lembrar – confesso que não.
– Não me admira – respondeu –, a menos que tenha visto o filme “Assim Caminha a Humanidade”.
– Eu vi – respondi.
– Pois a família Benedict é aquela dos milionários do gado.
– E por que diabo você está falando disso? – indaguei.
– É que – ele aponta para o enorme terreno com atlântica piscina ao meio – festa igual a esta que vou dar hoje só eram dadas pelos Benedict da fita.
Depois disso, passei bom tempo sem vê-lo. Porém, no dia da eleição, pelo colégio eleitoral, de um dos generais da ditadura, houve o reencontro. Topei com o amigo no Hotel Nacional, durante o beija-mão. O vi abraçando o futuro ocupante do Planalto. Após veio a mim. Perguntou, na lata:
– Tá aqui para cumprimentar o homem?
– Não – respondi – sou repórter, você sabe. Estou trabalhando.
Nesse instante um garçon passava com badeja cheia de copos com uísque; ameacei pegar um.
– Absolutamente, este é nacional, pra plebe.
Dito isto me arrastou para uma saleta onde se encontravam vários ministeriáveis em algazarra regada a Royal Salute.
Faz uns tempos o hoje bilionário ligou pra minha casa, em Campinas, perguntando se poderia mandar o seu jatinho me apanhar em Viracopos, pois desejava falar comigo. Respondi que não precisava tanto, que eu nem saberia como entrar num avião executivo e que iria até Brasília em aeroplano de carreira mesmo. Fui e, recebido numa das fazendas do nosso herói, ele me perguntou se eu seria capaz de escrever um livro igual aos que eram produzidos por Harold Robbins. Respondi que certamente não, e quis saber o motivo da indagação.
– Olha – ele me falou, sério – acho que minha vida daria um romance.
– Puxa – falei, decepcionado – mas Harold Robbins?
Daí sugeri o nome de alguns amigos talentosos que poderiam operar a obra, só que o papo acabou se esgotando ali mesmo.
Porém o fecho desta história ocorreu não faz muito tempo. Fui cobrir um jantar de ministros em luxuoso hotel de São Paulo e, de repente, dou de cara com o antigo peão de obras dos primórdios de Brasília. Acabamos sentando para um drinque e, após as doses que permitem certas aberturas olhei firme nos olhos do camarada. Falei:
– Sabe? Te conheço há tantos anos mas há um troço que nunca te perguntei. Afinal, como é que você ficou tão rico?
– Bem – ele sorriu – antes de mais nada posso te garantir uma coisa: corrupto eu não sou.
– Claro, e nem estou insinuando isso, não é?
– Porém – o personagem termina – dificilmente você conhecerá, em sua vida, outro que seja tão corruptor…
Levantou dando três tapinhas no meu ombro. É que acabava de entrar uma loura altamente oxigenada, a quem abriu os braços:
– Que bom que você veio, meu amor.
Agora já não tenho nenhuma dúvida que Harold Robbins ganharia alguns milhões de dólares com esta história…
Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular
Adorei as crônicas.
que maravilha, me fez ri, pensar e transpirar pois esse nosso país proporciona a talentos como você essas possibilidades.
Amei este texto. Antonio Contente, também me uno aos que esperam repetecos de suas crônicas do século passado. Lia suas crônicas no saudoso “Notícias Populares”.
“Em busca de um autor” me faz lembrar seu Francisco Themontier, paraibano de Brejo do Cruz, atualmente proprietário de panificadores em Porto Velho (RO). Ele teve relacionamento diário com peões de obras construtores de Brasília, os quais alimentava todo dia com bolos de diversos sabores e no fim de semana recolhia o pagamento com um saco (!) de dinheiro.
Pois Themontier, homem que ajudou na alfabetização de dezenas de irmãos e parentes após a morte dos patriarcas considerava esses peões tão fiéis quanto os pagadores de carnês das lojas Gazin e Casas Bahia.
Com certeza Themontier seria seu personagem, não apenas por relatar a vida de peões de obras, mas por descrever o começo dele no emprego dado por um português fabricante de pão pulman em São Bernardo do Campo, para quem oferecia suas criativas receitas de bolo.
Pena que os jornais não publicam mais crônicas, Contente. As suas são essenciais no momento em que somos obrigados a engolir tanta notícia ruim e pouco edificantes.
Mas, se a realidade só nos permite mergulhar no túnel do tempo, vamos nos satisfazer com o que lemos neste blog. Fraterno abraço
corrigindo: proprietário de panificadoras