O “cara” está indo embora mas está deixando a casa toda arrumadinha.Vai passar a faixa para dona Dilma no começo do ano novo, mas com a consciência do dever cumprido. Afinal, como ele disse na campanha, dona Dilma é ele, ele é dona Dilma.
Ele vai ter que ir mesmo, mas não está gostando muito da idéia.No primeiro dia do último mês do ano, Franklin Martins, o seu ministro da Verdade, teve o mau gosto sádico de lembrar-lhe: “Presidente, hoje começa a contagem regressiva”. E ele: “Nem me fale nisso”. (Conforme Painel, Folha de S.Paulo, 2/12/2010).
Ele vai ter que ir mesmo, mas enquanto não vai trata de ajeitar as coisas: para o ‘alter ego’ que elegeu, deixa uma reconfortadora frase -“ o governo terá a cara de Dilma”- e um desmentido factual dessa mesma frase em tempo real e em forma de herança: deixou nomeados Nelson Jobim, o herói que conquistou o Haiti em uniforme de campanha e o que tentou mas não conseguiu aumentar a distância entre as poltronas para acomodar os mais volumosos nos aviões de carreira; Fernando Haddad, o ministro da Educação que vive tropeçando e engasgando nos exames para avaliar a qualidade de sua educação; Guido Mantega, o que combaterá a inflação censurando os preços que ousarem subir; e Marco Aurélio Garcia, o chanceler-sombra, autor da destemida política externa que ruge para os Estados Unidos enquanto mia para o Paraguai ou a Bolívia.
Depois de oito anos de glória e embevecimento pelo som de sua própria voz e pela profunda filosofia de suas metáforas, convencido de que é a própria encarnação do povo, Lula está fazendo a arrumação da casa para a nova inquilina, e como parte dessa arrumação quer legar-lhe também um avião de R$ 500 milhões que não nos envergonhe nos aeroportos do mundo. Afinal, o velho Aerolula (na verdade, um moderno Airbus A319CJ) que tanto nos humilha com sua escassa autonomia de vôo, já vai fazer oito anos, e pode ser recolhido aos hangares em companhia do decrépito Sucatão em que FHC deu algumas voltas ao mundo.
Às vésperas de voltar para a planície, porém, Lula, que sai aclamado pelo povo e abraçado ao seu próprio ego hipertrofiado, nos deixa também alguns legados dispensáveis, que seria de bom tom que não freqüentassem a narrativa presidencial que ficará para a posteridade, tais como: a defesa da família Sarney como instituição da República; o truque da transformação do episódio do mensalão numa “tentativa de golpe”; o condicionamento constante do seu apreço pela liberdade de imprensa à publicação da “verdade”, como se ele fosse dono de sua única versão válida e publicável; a repetição incessante da falácia da existência de um “preconceito das elites” contra o pobre retirante nordestino e depois operário metalúrgico que voou do nada para a Presidência da República; o desprezo às dissidências políticas perseguidas e esmagadas por regimes comandados por autocratas amigos; e, por último, mas não menos importante, a negativa insistente de qualquer avanço histórico do País antes do advento de sua gloriosa e inatacável figura e do seu tão nunca-antes-tão-maravilhoso governo.
Como Lula mesmo disse numa entrevista a rádios comunitárias na quinta-feira, dia 2, sobre a chegada do momento de ir embora: “Preciso me mancar”.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 3/12/2010