E o dinheiro da gasolina?

Sonho que batem na porta do meu quarto:

— Interurbano de Curitiba!

Segundos depois, de novo.

— Interurbano de Curitiba!

Não se tem sossego nem pra sonhar, penso, acordando.

Acendo a luz, procuro o relógio:

— Pô! Domingo, sete da manhã!

Do outro lado da linha, uma voz, eufórica, quase grita:

— Que bom te encontrar! Tive medo de que você estivesse viajando!

Mais sonolenta que assustada, anoto um nome no canto da folha de papel em que, na véspera – bem na hora de dormir – anotara os deveres da segunda-feira. Padaria, fisioterapia, dentista, supermercado, banco, escritório, farmácia, sapateiro, ah, uma procissão de conversa fiada.

Anoto o nome e, bem acordada, tenho certeza de que nunca ouvi falar naquele cidadão que, voz sempre estridente, vai desfiando contratempos na manhã chuvosa de domingo.

Não apenas assustada e sonolenta, mas – sobretudo – desanimada, ouço, ouço.

Poderia desligar, coisa que costumo fazer quando gente que não conheço telefona, nos horários mais malucos, oferecendo bugigangas e badulaques mais malucos ainda: revistas em quadrinhos, telefones celulares,  flanelas para exaustores,  túmulos sei lá em que bairro da cidade.

Poderia desligar, mas, enquanto caminho pela sala vazia, me pergunto o que levará um indivíduo, em um domingo de manhã, a fazer uma ligação de Curitiba pra São Paulo, aparentemente sem nenhum motivo sério. Queixar-se da vida, talvez?

Como se adivinhasse meus pensamentos, ele diz estar precisando de gasolina. Perdeu a carteira.

— Em Curitiba???

 Não, a pessoa entendeu errado, seis da manhã, chuvinha fria, isso confunde qualquer um. Ele não está em Curitiba, mas no Terminal Rodoviário do Tietê. Perdeu a carteira em Taubaté, onde está passeando com a família.

— E como é que você veio de Taubaté?

De ônibus, pra arranjar dinheiro pra gasolina do carro deixado lá. Se eu quisesse, acreditasse. Se não, telefonaria a outras pessoas amigas. Tinha vários números na agenda. Não, não tinha perdido a agenda, nem os documentos, só a carteira. Com o dinheiro da gasolina, pra voltar pra Curitiba.

Tentei lhe dizer que, além de estar achando sua história muito confusa, não era sua amiga.

— Como? Não é minha amiga? Como?

— Conheço todos os meus amigos, sei o nome de cada um, e o seu não faz parte deles. Por favor, vamos ser lógicos e racionais. Esta cidade é enorme, a rodoviária também, você pode arrumar esse dinheiro por aí. Entendo seu problema, mas vou desligar.

— Você invade minha casa, lá em Curitiba, e eu não posso nem te pedir um dinheiro pra gasolina?

— O quê? Só fui a Curitiba umas duas ou três vezes, e nunca invadi casa de ninguém, pô! Nem lá, nem em nenhum outro lugar! Sou mãe de três filhos adultos, não nasci ontem, nem anteontem, e…

— E o livro que meu filho trouxe da escola pra casa?

— Que livro?

— Aquele que fala em um passarinho do bico torto, meu filho levou da escola pra casa. Agora, você está me entendendo? Você invadiu minha casa, sim. Invadiu e ficou, lá no quarto do meu filho.

Digo-lhe que entendo, sim, entendo. Por mais inacreditável, acredito e entendo. No entanto, que ele também entenda que não caminho junto com meus livros, embora a idéia possa ser tentadora. Não invadi sua casa. Onde já se viu?

— Invadiu, sim. Todos lá te conhecem, você passou de mão em mão…

— Meu Deus! Que maluquice é essa? Nunca vi uma história tão doida!

— Boa pra escrever, não é?

— Ótima, muito melhor que as minhas. Muito melhor que a do passarinho do bico torto.

— Então, escreve!

— Se eu te disser que vou escrever, você me deixa voltar para cama, dormir sossegada e, se possível, voltar a sonhar?

— Claro!

— Boa noite, então. Ou bom dia.

— E o dinheiro da gasolina?

 As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.

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