Ele anda em torno dos 80 anos e mora numa bela e decadente mansão aqui mesmo no meu bairro campineiro. Não apenas o imóvel, como o próprio camarada, é o que resta de uma das antigas famílias da terra. Dizem, e certamente provam, que seu avô paterno foi um dos mais destacados barões do café de quantos habitaram esta maltratada, porém sempre amada cidade. E sua avó materna, de nome quilométrico, até a década de trinta morava em uma impressionante fazenda ali para os lados de Joaquim Egídio.
Bom, mas o camarada a quem me refiro, na verdade uma pessoa que estimo, hoje vive sozinho na casa que a impiedade do tempo corrói. Como possui vários imóveis menores bem alugados, está longe de ser exatamente um duro. Inclusive, em certos fins de semana, costuma receber interessantes visitas femininas, às quais, invariavelmente, serve cálices de vinho do Porto, ou “Port wine”, como gosta de dizer. Eu, sempre que apareço, sou brindado com um Jerez. Por me imaginar um ser algo barroco, sabe que adoro certas coisas que ninguém mais consome. Até imagino que compra a bebida só pra mim.
Assim foi que, dia destes, apareci para um papinho de fim de tarde e o esplêndido campineiro começou a falar a respeito da solidão. Súbito, enquanto passeávamos pelo jardim com flores levemente fenecidas, ele segura no meu braço. Murmura:
– Sabe?, para vencer minhas horas de solidão tenho duas alternativas.
– Quais? – mostrei honesta curiosidade.
– Ou fico sentado na cama apreciando os movimentos das baratas e lagartixas que disputam lugares nas paredes, ou assisto TV.
– Ora – dou um sorriso – você, naturalmente, prefere o segundo passatempo, certo?
– Nem tanto – ele me garante – Aliás, na maioria das vezes, entre a TV e apreciar baratas, prefiro sacar as bichinhas.
Pois muito bem, depois deste papo algo surrealista fiquei pensando que o charmoso quatrocentão resolvera fazer tipo. Afinal, optar por um repelente inseto em vez de um programa na telinha, por pior que seja, é dose. Ah, devo abrir um parênteses para afirmar, até com certa solenidade, que nunca duvidei da sanidade do meu amigo, muito pelo contrário. Depois, vejam bem, um ser humano que agüenta, com estoicismo e classe, a opção de ver e talvez ouvir baratas, merece muito mais minha confiança do que aqueles que garantem que andam por aí vendo, ouvindo e entendendo estrelas. Até porque isso é só para os iniciados. E Olavo Bilac, claro, foi um dos poucos que conseguiram.
Pois é, na semana passada precisei fazer uns troços aqui mesmo pelo bairro quando, sem querer, mas talvez querendo, me vi diante do descorado palacete do meu amigo. Impossibilitado de resistir, lá estava, batendo à porta.
– Ora, ora – ele vem, braços abertos – quem não morre sempre aparece.
Fui entrando e, confesso, constatava, mais uma vez, o quanto gosto daquela suave decomposição, daquele vago cheiro de mofo misturado com lavanda. Até o robe-de-chambre do meu bissexto anfitrião, nobremente fora de moda, conserva finesse e encanto que deveriam ser assunto das, como se dizia antigamente, colunas mundanas. Entramos, sentamos, peguei meu cálice com Jerez e, pelas tantas, enveredei pelo assunto que, dias antes, me fizera pensar.
– E então – pergunto – você está na fase da TV ou das baratas?
– Bem – ele sorri – como a amiga que hospedei uns dias aqui voltou para São Paulo, tornei imediatamente à fase dos insetos.
– E eles, alguma novidade no setor?
– Pois aí é que está. Como percebi que vinham fazendo a mesma coisa, dei uma passada pela TV.
– Ótimo – esfrego as mãos – pois na verdade as baratas me causam arrepios.
– Só que quando foi naquela quinta-feira do mês passado, dia…Dia…
– Ué, o que houve na tal quinta-feira, não interessa o dia – interrompo.
– Pois é, na fatídica quinta-feira voltei, com toda força, às baratas.
– Mas por quê? Sucedeu alguma coisa tão grave?
– Sabe? – ele me encara – Há programas de TV que você até pode assistir inteiro, como um bom filme ou certos documentários da BBC, por exemplo.
– Exato – concordo – principalmente os documentários.
– Há até uns outros programas – ele continua – que mesmo sendo solenes porcarias, você resiste 15 ou 16 minutos.
– Muito bem – cruzo as pernas – um programa chato desses te deu no saco e você voltou aos insetos, foi isso?
– Não, eu voltei a eles por causa de um outro programa, bem específico.
Daí contou que na quinta do mês findo que não sabia o dia, o Jornal Nacional foi interrompido para a exibição do horário político dedicado ao PMDB. Para quem não sabe, trata-se daquela agremiação partidária que, no passado, teve um candidato a governador muito, para usar eufemismo, maroto. Diante da falta de carne nos açougues que ocorreu durante o governo Sarney, ele enganou muito trouxa jurando que, eleito, iria para os pastos laçar quadrúpedes ruminantes para colocar os bifes nas panelas dos necessitados. Foi então que o um dia heróico PMDB, das lutas contra a ditadura, se tornou o Partido do Me Dá um Boi.
– Mas você assistiu ao programa do tal partido até o fim? – retomei o fio do papo.
– Negativo. Vi durante dois minutos, quatro segundos e dois décimos. Então, descobri.
– Descobriu o quê?
– O seguinte – ele termina – se entre o troço do PMDB e as baratas eu preferi ficar com estas, é sinal que os ortópteros onívoros, da ordem dos balatários, naquela noite salvaram não só minha solidão; mas, principalmente, a sanidade da minha consciência política.
Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular
Parabéns!
Após 18 anos sem ter notícias suas e sem ler as maravilhas que escreve, li num note book de uma amiga: De política e ortópteros e amei!
Com a eterna amizade e um abraço da My.