Cyd Charisse

Este é que é o grande e fascinante paradoxo: agora que a atriz e dançarina Cyd Charisse morreu, a triste notícia não mexe um milímetro com a certeza que sempre tive sobre a sua eternidade. Nem fez muitos filmes, porém todos que rodou foram absolutamente maravilhosos. Até os em que não aparecia como protagonista principal, como Festa Brava, de 1947 (no topo vinha Esther Williams). Mas quem esquece da Conchita no memorável número de dança com Ricardo Montalban?

Para mim, nos anos dourados do cinema em que o technicolor da Metro era regido por Natalie Kalmus, nenhuma outra atriz americana que passou diante dos meus pobres olhos foi mais linda do que Cyd Charisse. Morena, alta, de pernas galgas apontadas como as mais perfeitas do mundo de então. Além de tudo, amigos, tal criatura dançava. Quando digo isso assim de forma tão simplória, não dá para dimensionar o que realmente significa o fato de que ela certamente deixaria Terpsícore, apesar da olímpica condição de deusa, com acachapante complexo de inferioridade.

Cyd estourou para a admiração mundial com Cantando na Chuva, clássico musical de 1952. Aí novamente vale a observação que fiz acima: a protagonista não era ela, sim Debbie Reynolds. Porém o único número em que aparece dançando com Gene Kelly foi tão marcadamente espetacular, que a película acabou por ser mais dela do que de qualquer outro ator do fantástico elenco.

Seus dois principais parceiros foram Gene Kelly e Fred Astaire. Contracenou com cada um, estrelando, por duas vezes. O primeiro a conduziu nos braços em A Lenda dos Beijos Perdidos e Dançando nas Nuvens. Com o segundo esteve em A Roda da Fortuna e Meias de Seda.

Ora, amigos, vamos falar a verdade, eu acho que A Lenda foi um filme meio injustiçado, à época em que passou. Mas a história que conta é tão adaptável às circunstâncias das fantasias de qualquer tempo, que acabou por virar clássico. A saga é ambientada em uma cidadezinha das Terras Altas da Escócia chamada Brigadoon (o nome da fita no original). Localidade que só emergia das brumas do tempo de cem em cem anos para que, durante 24 horas, seus moradores fossem tomados por momentos de festas. Pois lá chegam dois caçadores americanos (Gene e Van Johnson) perdidos. Kelly, de cara, se apaixona por Fiona (Cyd), linda habitante do local. Os números musicais são belíssimos, e Brigadoon acaba por ser metáfora atemporal aos mágicos momentos que, de repente, tomam nossas vidas para propiciar decisões e embates.

Com Fred o celulóide inesquecível, pra mim, foi Meias de Seda. Em que tudo é tão bem encaixado que se concluía que Cyd e Astaire haviam nascido um para o outro, caso não fosse verdade que tal situação poderia se desdobrar também quanto a ela e Kelly. Tudo isso com fundo musical de Cole Porter, o que por si só tornaria brilhante lapidado qualquer pedra bruta. A história, refilmagem de Ninotchka, de Ernest Lubitsch, se passa na época da Guerra Fria, com Cyd interpretando a comissária russa Nina Yoeshenko. Ela vai a Paris tentar dissuadir alguns parceiros comunas que se encantavam com o capitalismo, levados pelo personagem de Astaire, o bon vivant empresário americano Steve Caufield. Além da música maravilhosa e dos números de dança de tirar o fôlego, também os diálogos da película são ágeis e espirituosos. Lembro, agora, de um em que Nina se irrita com Steve por causa da apologia que ele fazia do champã e das noitadas cintilantes. Daí pergunta, ríspida, se ele, afinal, estava do lado dos oprimidos ou dos opressores.

– Dos opressores, é claro – vem a resposta.

Exatamente do mesmo jeito que, hoje, responderia o nosso presidente Lula num país em que os banqueiros nunca ganharam tanto dinheiro. E nem sequer temos, para consolar, os encantos dos números de dança de Fred Astaire e Cyd Charisse. Que revejo neste instante a pairar sobre os jardins do Central Park numa linda noite, envolvidos pelos sons dos violinos a tocar “Dancing in The Dark” no Roda da Fortuna. Saudades, amigos, profundas saudades. Apenas amenizadas porque o cinema é, de alguma forma, parceiro do eterno.  

Esta crônica foi publicada pelo Correio Popular, na época da morte de Cyd Charisse, em 2008.

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