Mesmo tendo sido criada em fazenda, custei a conviver com tratores.
Meu pai, mineiro, antigo, cauteloso, incapaz de um passo maior que as pernas, pelejava com arados e carros de bois.
Mais tarde, anos 80, a fazenda dividida entre os filhos, apareceu por lá um desses milagres modernos, socorro da agricultura precária, abandonada.
Pneus, volante, carreta, tudo enorme, exagerado. Desengonçado.
Com o tempo, de tanto vê-lo cruzando as estradas, pra lá e pra cá, me acostumei com o geringonça. E com seu ruído rude, anúncio de plantações, colheitas, transportes.
Uma vez, fui transportada.
Estava indo visitar minha irmã, que sempre me esperava com pães de queijo e flores. Os primeiros, quentinhos, acabados de sair do forno. As outras, perfumadas, acabadas de ser colhidas.
No ônibus, apesar dos sacolejos e da poeira – ou talvez por isso – não tirava os olhos do jornal, que me deixava em dia com os grandes acontecimentos do país.
O presidente Collor, por exemplo. Andava sem aliança, por causa de uma briga com a mulher.
A ministra Zélia, por exemplo. Havia comemorado o aniversário dançando um bolero – “Besame Mucho” – com o ministro Cabral.
Embalada por notícias tão edificantes, não percebi quando o ponto em que devia descer – uma porteira conhecida desde sempre – ficou pra trás.
Alguns quilômetros adiante, me vi na estrada, fazendo o caminho de volta.
— Dessa mala pesada, cheia de livros, me livro logo – pensei, planejando escondê-la entre os galhos de alguma árvore.
Antes que eu fizesse fosse o que fosse, ele chegou. Barulhento, rude, vagaroso.
— Você leva minha mala? – perguntei ao motorista, chamado de tratorista.
Antes que ele dissesse fosse o que fosse, uma voz conhecida se espantou:
— Uai, você? Perdeu o rumo? A Delza foi te esperar no ponto, de carro, você não viu, não? Anda, sobe, vamos embora.
Segurei firme a mão que, do alto de um monte de capim, meu cunhado Jairo me estendia, e fiz minha estréia num trator, que achei simpático. Parecido com carro de boi. Primos, talvez.
Em casa, minha irmã:
— Você? Pensei que não tivesse vindo!
— Eu não te disse que viria?
— Mas você não desceu no ponto! Fui te esperar, o quê que aconteceu?
— Ah, depois te conto. Culpa do Collor. E da Zélia.
— De quem?
26/5/1991
As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.
Vivina, delícia de crônica, de texto. Gostaria de jogar os jornais fora e passar o dia lendo apenas coisas assim.
Isso se chamaria felicidade.
Valdir,
não jogue os jornais fora. Suas páginas estão constantemente povoadas por nossas autoridades, personagens absolutamente imperdíveis.
Ah, seu comentário, além de imperdível, é comovente.
Vivina.