Coisas do Mundo

De vez em quando, ao ver alguém sendo entrevistado, me imagino lá, na berlinda.

Resposta a resposta, ensaio a minha, enquanto espero a alheia.

Terminado o teste, nunca me surpreendo. As respostas alheias venceriam no primeiro turno – com margem de erro de dois pontos para mais ou para menos –, e eu jamais seria convidada pra coisa alguma. Falta total de originalidade, criatividade, ou qualquer outra exigência do momento.

Que graça haveria, por exemplo, se algum repórter perguntasse qual meu prato preferido e ouvisse ovo – simplesmente ovo – como resposta?

Que graça haveria, por exemplo, se alguém soubesse que torço pelo Galo, que tenho medo de cobra, de avião, que odeio mentira, elevador, que gosto de chuva, de terra? Que adoro ler ao ar livre, se possível com canto de passarinhos, e de escrever ouvindo música, se possível caipira?

Ah, que graça poderia existir se eu confessasse que, neste exato momento, ouço Pena Branca e Xavantinho cantando “Viola Quebrada”, de Mário de Andrade? E se dissesse que isso já dura algumas horas, desde o texto anterior, que custou a ter vida própria?

Gracíssima nenhuma.

No entanto, a recíproca não é verdadeira. Acho a maior graça nos mistérios e nos segredos alheios.

Desde a primeira vez – mais de um ano – em que fui ao bar Roda Viva, aqui em São Paulo, me pergunto quais nomes de músicas, rabiscados em guardanapos, seus freqüentadores entregam aos músicos da casa, dois: Rogério, intérprete inseparável do violão, e Biela, intérprete fiel ao cajón, instrumento de percussão de origem peruana.

Parceiros perfeitos, em gestos e vozes, um completa o outro, entrosados, irmanados.

Entre um e outro copo da cerveja gelada que o Gugu – simpático e sorridente desde o momento que nos recebe, no alto da escadaria – não deixa faltar, tento adivinhar que guardanapo rabiscado terá confessado fazer “samba e amor até mais tarde”; qual estará se “guardando pra quando o carnaval chegar”; qual terá beijado “sua mulher como se fosse a última”.

Rogério e Biela, que um público fiel não se cansa de ouvir – sempre às quintas – cantam sobretudo Chico. O Buarque. Todo o repertório.

Ouvi-los faz bem. Comovem e se comovem. Como se o Chico tivesse composto especialmente para os dois. Para que cantassem ali, com aquele público que, madrugada avançada, nunca quer ir embora. E que só vai após se despedir, emocionado, com a certeza de que a vida “estancou de repente”. Houve uma noite em que minha vida estancou de repente. Culpa do Biela.

Como ele e Rogério sabem que, além do Chico, Deus tem outros filhos igualmente talentosos, todo dia os dois fazem “tudo sempre igual”.

Ao lado das músicas do ídolo, também evocam Vinicius, Tom, João Bosco, Adoniran, Cartola, Nelson Cavaquinho, Ataulfo, Baden, Carlos Lyra, Toquinho. Paulinho. O da Viola.

No dia do meu guardanapo rabiscado, pedi que tocassem “Coisas do mundo, minha nega”.

Se me perguntassem em uma entrevista, a resposta viria, fácil. Talvez não seja a música que considero a mais bonita, mas é a que mais conversa comigo. Somos amigas de longa data, desde a gravação da Nara, lá pela metade dos anos sessenta. Antes ainda que a do Paulinho.

Lendo meu guardanapo, Biela disse que precisava aprender a letra, muito extensa. Iria aprender. Quando aprendesse, cantaria.

Como algumas quintas se passaram, e Paulinho continuava sendo lembrado com “Coração Leviano”, “A dor não tem razão”, “Sei lá, Mangueira”, “Timoneiro”, “Foi um rio que passou em minha vida”, “Pecado Capital” e “Argumento”, tive certeza de que a letra extensa assustara meus amigos. O Paulinho bem que podia ter escrito menos, pensei.

Eu não sabia que minha vida poderia estancar de repente, sem que o Chico tivesse culpa alguma.

Estancou. Culpa do Biela. Uma noite, sorriso de dever cumprido, olhar de cumplicidade, ele avisou. Cantaria uma música que, há algum tempo, uma moça havia pedido.

Agradecida pelo “moça”,  senti e vivi cada sílaba. Semanas depois, voltei. Ele cantou de novo. Mais uma vez, de novo.

Se tiver coragem, qualquer noite rabisco outro nome no guardanapo: “A estrada do sertão”, poema de Hermínio Bello de Carvalho. De chorar.

Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma.

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