Ágata

Ágata me contou que veio para esta cidadezinha da Ilha do Marajó faz algumas semanas, e que ainda vai ficar alguns meses. Ela trabalha numa repartição do governo que tem escritório aqui, e está cobrindo o período de licença de uma colega. Despacha pequenos papéis, carimba coisinhas, tudo numa sala apertada, numa casa de madeira com telhado de zinco próxima à praça principal que é o centro da movimentação dos que vivem na área. Ocupa uma mesa baixa, com ventilador de teto sempre a girar. Talvez você já tenha visto cena semelhante em velhos filmes americanos que contavam histórias passadas nas ilhas dos Mares do Sul.

Ágata aparenta 50, diz que tem 40, porém talvez ande pelos 47. O clima meio áspero quase na linha do Equador certamente não fez nenhum bem à sua beleza, contudo não a devastou totalmente. Os olhos de Ágata, por exemplo, são absolutamente luminosos. E quando sorri, mostrando dentes surpreendentemente alvos, exibe duas covinhas bastante charmosas nas bochechas.

– Na realidade – ela me disse –, a solidão aqui na ilha não pesa o tempo todo. Agora, no fim da tarde, começo da noite, sai de baixo…

Foi nesse ponto que ela acabou detalhando a parte que achei mais pungente da sua vida recente. A repartição a mandou para cá sem alternativas, e não lhe deu nada além das passagens em um barco atulhado. Nos primeiros dias ela ficou num quarto que alugou na casa de uma senhora nativa. Quartos, afinal, sempre se alugam de “uma senhora”.

– Mas era muito quente – Ágata suspira – e com verdadeiras nuvens de carapanãs.

– E o que você fez?

– Arranjei uma casinha. É de fundos, perto do mercado, porém tenho a companhia da dona do imóvel, na frente.

– E os carapanãs?

– Comprei um ventiladorzinho. Você sabia que qualquer ventinho espanta os mosquitos?

– E a sua família, Ágata?

– Mora em Belém.

– Marido? Filhos?

– Não. Mãe, irmãs…

– Bom, enfrentar essa barra mais alguns meses não vai ser nada mole, não é?

– Não vai. Principalmente depois que eu pensei ter achado um meio de driblar a solidão.

Lembrou então que, não muito tempo depois de ter chegado à ilha, apareceu na repartição alguém que ela considerou “um moço muito simpático”. Mais novo do que ela, é certo, porém bem falante, comunicativo, alegre.

– Todo dia de tarde vinha me buscar. Comíamos alguma coisa perto do mercado, e íamos assistir à novela das oito na farmácia.

– E depois?

– Passeávamos na praia.

– E depois?

– Foi o melhor tempo na casinha de fundos que aluguei. Aposentei a rede de solteira, comprei uma grande, com varanda, de casal.

– Bom – observo –, como você acentuou que “foi”, só posso dizer que lamento que nada tivesse dado certo.

– Pois é, um dia ele chegou pra mim e pediu que lhe trocasse um cheque. Sabe o que eu fiz?

– Trocou.

– Não, eu disse que não precisava. Se ele necessitava de algum dinheiro eu emprestava, não precisava nenhum cheque.

– E ele? Aceitou?

– Não. Fez questão de me dar o tal cheque. Era uma sexta-feira, disse que ia a Belém resolver uns troços e que na segunda voltaria.

– Lamento que não tenha voltado.

– E eu muito mais. Na segunda, quando sai da repartição fui para a casinha, não consegui dormir.

– Ficou acordada a noite toda?

– Não, peguei a rede e fui para o meu local de trabalho, tenho a chave de lá.

Nessa altura do papo eu estava com uma pergunta engatilhada, sobre o cheque, naturalmente. Talvez me preparando para fazê-la, busquei uma frase óbvia de consolo:

– Ora, vai ver que ele ainda aparecerá. Depois, se te deu um cheque sem fundos…

– Pois aí é que está – Ágata corta e me olha nos óculos.

– O que? – Levanto as sobrancelhas.

– Também pensei que o cheque não tivesse fundos, quase não fui recebê-lo na única agência de banco que tem aqui, ali na pracinha. Tinha fundos, sim.

– Ora, menos mal – dou um sorriso.

– Poderia ser – ela suspira – só que eu nem fazia questão dos vinte reais. O que eu queria, te juro por Nossa Senhora de Nazaré, é que ele voltasse…

Este texto foi originalmente publicado no Correio Popular

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