Matrifusia

Segunda-feira, meio da tarde, chave na porta a caminho do trabalho, calor dos últimos tempos – insuportável -, o telefone chama.

De longe, outra cidade, uma voz amiga e conhecida, tão conhecida e amiga que quase sempre posso sentir – ou pressentir – o que vai dizer, me comunica, desolada, o que não gostaria de comunicar, enquanto ouço, assustada, o que não gostaria de ouvir.

Sempre me pergunto, em vão, por que um amigo se vai. Sobretudo assim, de repente, antes da hora.

Me pergunto como conviver com o que fica faltando dele. Com o que não vai mais ser vivido, nem dito, nem escrito.

Nessa segunda-feira, meio da tarde, aqui em São Paulo, me pergunto por que meu amigo Eustáquio Rodrigues se foi. De repente, antes da hora.

Mesmo sabendo que, nesse momento, ele está sendo levado para a Colina, em Belo Horizonte, não penso nele como se pensa em alguém que interrompe para sempre os trabalhos.

Penso nas vezes, inúmeras, em que, trabalhando juntos – ele era o chefe – nos debruçamos sobre textos e mais textos, nossos e alheios, procurando decifrar o que poderiam conter de surpreendente, quando pareciam tão cotidianamente corriqueiros.

Meu amigo sempre descobria.

— Sabe o que tá faltando? Uma boa matrifusia! – anunciava, eufórico.

Matrifusia, que nunca ouvi de ninguém, nem nunca li em nenhum livro ou jornal, nem encontro hoje, agora, enquanto escrevo e consulto o dicionário, era sua palavra mágica.

Com matrifusia Eustáquio organizava coleções, editava livros, seduzia amigos, freqüentava bares, chorava e curava mágoas.

A edição de um livro emperravava? Matrifusia. A ilustração deslumbrava? Matrifusia. A gráfica atrasava? Matrifusia. O livro ganhava prêmios? Matrifusia.

À noite, no bar, a cerveja fabricada com matrifusia cuidadosa não combinava com o torresmo magro, sem matrifusia nenhuma? Não pensava duas vezes. Entrava no carro e buscava outro – no bairro distante, da adolescência – carregado de matrifusias.

Atrás dos óculos, olhos apertados pelo sorriso largo, ele comemorava:

— Agora sim, cheguei ao lugar certo. Bar sem matrifusia não dá.

— Só bar? – alguém provocava.

— Tudo! Livro, cachaça, carro, mulher, família, sorvete, bacalhau, futebol, torresmo, samba, cidade.

— Que cidade tem matrifusia, Eustáquio?

— Tiradentes, conhece? Claro, quem não conhece? Nunca vi tanta matrifusia num lugar só. Matrifusia bonita, barroca.

— E aqui, em Belo Horizonte?

— Você vai rir de mim, dizer que tô bêbado. Sabe onde existe uma matrifusia danada, aqui? No cemitério da Colina. Passo por lá quase todo dia. Nem um túmulo, só aquelas placas espalhadas pela grama. Você já foi lá?

— Não.

— Aquelas placas todas, cada uma com um nome, sabe o que elas parecem? Livros. Muitos livros. Todos fechados.

— Ilustrados?

— Todos! Matrifusia pura!

As crônicas de Vivina de Assis Viana estão sendo publicadas pelo site primeiroprograma.com.br.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *