Abre as asas sobre nós

Deve-se, então, limitar a liberdade do indivíduo para que ele não se torne nocivo aos demais.
(
John Stuart Mill, “A liberdade”)

O humorista está proibido de satirizar os políticos; os pais estão proibidos de dar palmadas nos filhos; os torcedores de futebol estão proibidos de brigar a menos de 5 km dos estádios; os políticos de ficha suja estão proibidos de se candidatar a cargos eletivos; as pessoas estão proibidas de fumar em recintos públicos; não se pode beber e dirigir.

Alguém pode ser contra medidas tão morais, tão higiênicas, saudáveis e antidiscriminatórias?

A questão, na verdade, não é essa. A questão é a que o psicanalista Contardo Calligaris colocou cirurgicamente na sua coluna na Folha de S.Paulo desta semana, num artigo sobre a lei da palmada: “Pergunta: para que servem leis que pouco mudam o quadro legal e só explicitam e particularizam proibições que já vigem de modo geral”?

Esse é o problema da excessiva intromissão do Estado na vida dos cidadãos : ele entra em minudências coercitivas da vida particular das pessoas e reitera que é delito aquilo que já era assim definido em outras leis. Ou seja: não há novos delitos, há novas leis, novos regulamentos, novas proibições, inclusive do que já era proibido. Ou antes da existência da Lei da Ficha Limpa o político podia fraudar ou roubar? Ou antes do Estatuto do Torcedor as torcidas organizadas podiam se massacrar longe, perto ou dentro do estádio? Ou os bêbados podiam atropelar e matar as pessoas? Ou os pais podiam espancar seus filhos? Ao criminalizar cada vez mais minuciosamente as transgressões, duplicando ou triplicando a sua tipificação, o Estado faz com que aumente a sensação geral de impunidade. Quanto mais crimes a punir, menos crimes punidos.

Por conveniências políticas, as leis, os regulamentos, os estatutos, as normas, são feitos a toque de caixa, acabam se sobrepondo a leis maiores, às vezes até conflitam com elas, e criam um emaranhado legal cheio de contradições, fissuras, inconsistências e ambigüidades por onde advogados ladinos podem transitar com facilidade e aliviar a vida de seus clientes.

Quanto tempo vai demorar, por exemplo, para que a sociedade se desencante com a Lei da Ficha Limpa? Os legisladores correram para redigi-la e aprová-la a tempo de aplacar o clamor popular que exigia urgência para a medida moralizadora, e na pressa entregaram uma lei com tantas ressalvas, tantos buracos e tão confusa que dificilmente escapará de muitas contestações e alguma declaração de inconstitucionalidade.

Quando Garotinhos, Barbalhos, Malufs e Rorizes começarem a escapar pelos buracos abertos na malha da lei e aparecerem lépidos e fagueiros nas urnas eletrônicas, e depois nas cerimônias de diplomação, todas as boas almas que pressionaram o Congresso irão se juntar às legiões de desencantados que já acham que este País não tem jeito. E a sensação de impunidade ficará mais pesada e difícil de carregar.

Não precisamos de tantas leis e nem de tanta interferência do Estado na nossa vida. Não precisamos de tutela, precisamos de eficiência. Se as leis que já existem fossem cumpridas , o País seria outro.

Agosto de 2010

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat

Um comentário para “Abre as asas sobre nós”

  1. Sandro, como você diz “se a lei fosse cumprida”? Temos exemplos, meu caro. A lei do colarinho branco faz este ano 20 de existência. Muitas condenações. Prestação de serviços comunitários, pagamento de multa. Três a 45 salários mínimos. Já pensou? Mais de R$ 22 mil. Como? Cadeia? Sim, dura lex, sed lex. Três sujeitos foram exemplarmente para trás das grades.

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