A vida e a morte na ilha

Ora, amigos, quem imagina que numa pequena ilha na foz do Rio Amazonas que abriga apenas dois moradores não acontece quase nada, cai em ledo engano. Vejam que ontem vivi aqui acontecimentos tão estranhos, a ponto de me ver remetido a um episódio inscrito na biografia de François-Marie Arouet, o formidável Voltaire que tanto brilhou na França no século XVIII e, certamente, brilha até hoje.

O que aconteceu foi que quando o famoso autor de Cândido morreu, aos 84 anos, nenhum cemitério da capital francesa quis aceitar o seu corpo. Naturalmente que pelas posições iconoclastas que o escritor derramou, à época, sobre tudo e sobre todos. Pois bem, pensei nisso ao estabelecer diálogo com uma senhora, de alguma idade, que desceu de um barco dos típicos que correm os rios da Amazônia. A ancoragem aconteceu no meu pequeno trapiche de madeira, e a passageira veio a mim, na porta da cabana que me abriga. Deu bom dia e olhou nos meus olhos. Chorava, ao dizer:

– Queria que o senhor deixasse eu enterrar o corpo do meu marido no seu cemitério.

 Tivesse levado um murro no peito e não me assustaria tanto.

– Meu cemitério? – indaguei – Sou proprietário de um cemitério, minha senhora?

– Sim, fica ali na parte da ilha que dá para a Baía do Sol.

Bom, aí é que entra a lembrança de Voltaire a que me referi antes. Pois, mesmo admitindo que pudesse possuir um cemitério de que nunca ouvira falar, apesar de ter esta propriedade há quase dez anos, passei a pensar em por que a senhora queria enterrar o falecido lá. Perguntei se onde ela morava não havia necrópole. Tive a informação que sim, e mais: o último desejo do morto foi ser enterrado nesta ilha junto com seus pais, sepultados aqui há mais de 50 anos quando eram proprietários deste pedaço. Claro que imediatamente concordei que ela poderia trazer o morto e que não haveria obstáculo nenhum. Assim o féretro, com várias pessoas carregando o caixão, atravessou o pomar. Logo o cortejo sumiu no meio da floresta.

Ao ficar só chamei seu Pluéricles, o caseiro, e perguntei sobre o tal cemitério. De fato confirmou a existência, e até deu o detalhe que possuía pequena capela, que se encontraria em ruínas. Disse que tudo fora feito por antigos moradores, e que não tinha idéia de quantas pessoas poderiam estar enterradas, até porque nunca lá fora.

Mais de duas horas depois, permanecia eu a olhar a linha do horizonte, quando o féretro ressurgiu. Assustei porque junto vinha o caixão. Dirigi-me à viúva perguntando o que ocorrera, e ela explicou que o cemitério não existia mais. Ou seja, como ficava sobre um barranco à beira da baía do outro lado da ilha, a erosão tinha levado tudo. Não sobrou nem a capela. Meio desconcertado, suspirei:

– Não seja por isso, minha senhora, pode sepultar o seu marido no meio da floresta. Se o cemitério que havia sumiu, a gente inaugura outro.

Com os olhos vermelhos de tanto chorar ela agradeceu, fazendo sinal para os homens que carregavam o caixão. Lentamente, voltaram para a embarcação. Eu, sem nada poder fazer, permaneci a olhar o féretro. E como sempre acontece nessas situações, entrei no meu casebre, peguei gelo no refrigerador movido a gás, e preparei um uísque. Bebi coçando a ponta do nariz. Nada mais lúcido, em tal momento, poderia obrar.

Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular

2 Comentários para “A vida e a morte na ilha”

  1. Contente: essa histporia é tão extraordinária, que me acomete uma (ainda que ingênua) dúvida. Essa história do defunto errante ocorreu mesmo, ou é uma de suas brilhantes crônicas?

  2. Valdir, colega emérito, figura que coloca luzes e estrelas em nossa profissão: Olha, Valdir, como disse no início do texto, enganam-se os que pensam que não acontece nada numa remota ilha quase desabitada na foz do Rio Amazonas. A história do defunto errante não só é real como sucedeu apenas dois meses após o seguinte fato: as estradas na região são os rios; assim é por eles, em embarcações, e não por caminhões, que viajam os cirquinhos mambembes que fazem o encanto de quem mora no interior. Pois bem: um desses batelões conduzindo simpática troupe, pegou fortíssima tempestade perto da ilha em que habito. Com a ventania medonha, a gaiola em que se encontrava a onça amestrada se rompeu e ela caiu nágua. Nadou, então, até os meus domínios. O que aconteceu na sequencia está numa cronica perdida entre alfarrábios. Vou encontrá-la para publicar em sua homenagem, você que é também um colecionador de belas histórias.
    Antonio Contente

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