A Cadeira do Visconde

Só bem olhando é que se percebia que aquela não era uma cadeira comum. Tinha o encosto alto, e, tanto quanto o assento, era revestido com veludo verde-musgo. Os braços e detalhes do espaldar do móvel revelavam artísticos trabalhos. Flores, pequenas flores em relevo. Umas lembrando delicadas margaridas; outras, girassóis de pertinente chamamento à admiração pela perfeição com que o cinzel de um artista italiano trabalhara, na Roma dos anos 70 do século XIX.

Se muitos outros acontecimentos, conforme venho narrando neste espaço, marcaram a presença dos americanos na base que montaram em Belém do Pará na época da Segunda Guerra, certamente a charmosíssima cadeira acabou por merecer destaque especial. Isso por uma razão ponderável: na viagem que o presidente Franklin Roosevelt fez ao Brasil na época do conflito, o que mereceu mais destaque foi a passagem dele pela base do Rio Grande do Norte. É que o DIP, serviço de informações de Getúlio Vargas, aproveitou para divulgar de forma maciça a presença do mandatário ianque no Nordeste. E, até hoje, as únicas fotos que aparecem na mídia ou nos livros de História sempre mostram Roosevelt com o ditador brasileiro aboletados nos bancos de um jipe, em Natal (na foto abaixo, Roosevelt no banco da frente e Vargas no detrás).

Mas o que a cadeira da Base de Belém tem com isso? Muita coisa, como se verá. Pois a partir de acontecimentos ali registrados o móvel se poderia até dizer que criou vida própria, tornando-se personagem de uma saga com lances de suspense, emoção, singeleza, e, até, afeto.

Roosevelt chegou ao Pará à noite para poder, no dia seguinte, ir ao encontro com Vargas. Diga-se que não houve pompa e circunstância na recepção ao líder, até porque a descida na Amazônia estava inserida na parte secreta da excursão. Fora, porém, agendada uma reunião com os oficiais nativos e os americanos no comando da base. Na hora de arrumar o ambiente descobriram que não havia uma cadeira diferenciada em que o presidente pudesse sentar. Súbito alguém lembrou que na casa do comandante brasileiro existiam alguns móveis antigos, dado que ele era descendente do Visconde de Cametá, um ricaço que ganhou rios de dinheiro na época de ouro da borracha. E assim instalou-se na sala para receber o gringo o móvel conhecido como a Cadeira do Visconde. Terminada a reunião o dono não a quis de volta, afirmando:

– Esta peça onde o grande presidente Roosevelt sentou tem que ser eternizada em algum lugar da nossa base. E ninguém mais dela fará uso.

No Cassino dos Oficiais ergueu-se uma espécie de plataforma sobre a qual colocaram a relíquia.

Diga-se que durante todo o resto da Guerra, terminada apenas em 1945, a ordem acabou rigorosamente cumprida. E a cadeira talvez conservasse por mais tempo os fiapos da calça de Roosevelt entranhados no tecido do assento, não fosse o detalhe de o proprietário do móvel, aviador da FAB de alta patente, transferido para a linha de frente na Europa, morrer abatido por um caça da Luftwaffe.

Assim, terminado o conflito, na própria base mandaram oficiar missa solene pelos mortos em ação. Logo surgiu a necessidade de um assento especial para nele acomodar o cardeal primaz do Brasil, que fora especialmente à Belém para a cerimônia. Com o proprietário do móvel já falecido e a família tendo mudado para outra cidade, a alta autoridade eclesiástica ouviu os cânticos gregorianos devidamente recostada no histórico forro de veludo verde-musgo.

Daí em diante a Cadeira do Visconde ficou na própria capela da base com parte de sua importância esquecida, até porque, além do presidente Roosevelt, outro figuraço nela sentara. E daí por diante prelados de variadas posições e até simples acólitos fizeram o mesmo.

Em meados dos 50, mais de dez anos após o término da Guerra, a capela da base precisou de reparos. Como o governo fez corpo mole, o capelão apelou para a iniciativa privada. E um membro desta, sujeito de recursos abundantes, prontificou-se a bancar tudo. E, no dia em que se reuniu com o pároco, ao ver o móvel, mesmo sem saber a importância que já tivera, manifestou desejo de possuí-lo. No que foi prontamente atendido.

Agora façamos um corte para alguns meses depois. Exatamente a manhã em que um caminhão encostou diante de impressionante mansão cercada de copadas e nobres árvores numa discreta rua do bairro conhecido como Marco da Légua. A cadeira em que o presidente Roosevelt mais o cardeal primaz do Brasil sentaram, devidamente reformada, foi desembarcada. Diga-se que o charme permanecia o mesmo, apesar de o veludo verde-musgo do assento e do encosto ter sido trocado pelo mesmo tecido, só que de um vermelho berrante. O rico empresário e agora proprietário fez questão de entregar pessoalmente o precioso móvel para uma linda mulher que veio à porta recebê-lo.

 – Daqui pra frente – o camarada disse – será sentada neste trono que você, pessoalmente, comandará suas festas.

Isso de fato ocorreu e, durante mais de 20 anos, até os 70, a famosíssima Zizinha, a mais estrelada cafetina que Belém já teve, usou a cadeira, colocada numa espécie de nicho esculpido em mogno, para animar as esbórnias no seu bordel. E ninguém além dela jamais sentou no rubro veludo.

Contam que um dos seus últimos desejos antes de morrer, no final dos 80, devidamente aposentada e riquíssima, foi que a antiga e histórica Cadeira do Visconde, desmontada com esmero, fosse enterrada junto com ela. Onde agora dorme sono eterno sem glória porém num finíssimo mausoléu todo em mármore de Carrara. Caso tivesse ficado na Base Aérea, talvez apodrecesse em algum fundo de quintal, comida por prosaicos e desnutridos cupins…

Esta crônica foi originalmente publicada no Correio do Povo

2 Comentários para “A Cadeira do Visconde”

  1. Eu pensava que os militares tinham traído e abandonado o Brasil em 1954 (Manifesto dos Coronéis), 1961, 1964.

    Na verdade, a traição é mais antiga:

    [fala do milico em linguagem bíblica:] “Esta peça onde o grande presidente Roosevelt sentou tem que ser eternizada em algum lugar da nossa base. E ninguém mais dela fará uso”

    Foi pro inferno sem deixar saudade no Roosevelt.

    No Cassino dos Oficiais ergueu-se uma espécie de plataforma sobre a qual colocaram a relíquia (!!!?)

    A adoração aos EUA não se justifica, em nenhum momento, principalmente por indivíduos que deveriam ser a favor do Brasil.

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