Sempre foi inquieto, impaciente, avesso à repetição e à rotina. Desde os tempos de criança, primeiro em Valinhos, onde nasceu e brincou “nas ruas da infância, já que naquele tempo não tinha jardim de infância”, e depois em Jundiaí, onde o enfiaram “a muque” num grupo escolar (as expressões entre aspas são dele mesmo).
Só agüentou o grupo escolar até o terceiro ano – e, depois disso, jamais voltou a uma escola. Trabalhou em uma dúzia de atividades diferentes, a partir de então. Em algumas delas, chegou a ganhar algum dinheiro. Como a de compositor, que além de algum dinheiro (pouco, na verdade, bem pouco), lhe deu também fama, admiração, respeito e muitas homenagens.
Mas João Rubinato, aliás Adoniran Barbosa, sempre foi inquieto, impaciente. A fama e as homenagens chegaram muito tarde. “Por que não me procuraram uns 20 anos atrás?”, perguntou ele, incensado em 1980, ano em que completou 70 anos de vida. Recebeu as homenagens daquela ocasião dizendo que estava tão calejado com o sofrimento que já não era mais capaz de tantas emoções. E voltou para sua casinha no distante e pobre bairro de Cidade Ademar, na zona Sul da cidade que ele soube retratar como poucos artistas, onde se dedicava, na época, a construir miniaturas de brinquedos (bicicletas, parque de diversões, trenzinho, tudo, aliás, muito competente).
Nem mesmo esse hobbie agüentou muito tempo. Em outubro do ano passado (1981), confessou numa entrevista que havia resolvido abandonar o ofício, por considerá-lo “uma atividade de débil mental”.
Nos seus últimos anos de vida – justamente os anos em que, finalmente, ele teve a grandeza de sua arte reconhecida e passou a ser colocado ao lado de gênios como Dorival Caymmi e Cartola, no panteão dos grandes mestres da música brasileira -, Adoniran preferia recolher-se à sua própria intimidade, talvez por se sentir muito distante da cidade que ele conhecia, amava e espelhava em seus sambas – a São Paulo dos anos 30, 40, 50. Nos últimos tempos, sequer era o boêmio cuja imagem muito conhecida chegou a vender em comerciais de televisão:
“Eu só saio de casa à noite se for para trabalhar. Em parte isso é bom porque passo a evitar as noitadas, com bebidas e petiscos que só estragam minha saúde. A mudança para um lugar distante foi providencial. Se eu continuasse naquele ritmo, talvez eu não estivesse aqui para contar minha história”. Ele disse isso um ano antes de morrer.
Alguns anos antes, em 1975, ele já havia dito que se sentia um homem difícil, de um tempo que não existia (e nem existe) mais: o tempo das serenatas, da boemia nos bares calmos, dos passeios nas noites despreocupadas.
“É da roda de amigos que eu sinto mais falta. É dos anos 40 e 50 que eu sinto mais saudade. Porque agora tudo mudou: não se pode mais sair sem levar documento, não se pode fazer serenata sem autorização prévia, não se pode mais sair sem tomar uma série de cuidados. Nesse mundo de buzinas, congestionamentos e gritos, o que mais me consola é o samba. Um bom samba lírico, sarcástico, malicioso e emocionado. É com ele que eu fujo para o passado.”
O passado
João Rubinato nasceu no dia 6 de julho de 1910, em Valinhos, perto de Campinas, para onde haviam emigrado seus pais, italianos de Veneza. Foi o sétimo filho. Em Jundiaí, cidade para onde se mudaram e onde o meteram no grupo escolar, ajudou o pai no serviço de carga dos vagões da Estrada de Ferro São Paulo Railway, depois Estrada de Ferro Santos a Jundiaí. Ainda menino, foi entregador de marmitas, até ser demitido (abria as marmitas e furtava delas pastéis). Virou varredor numa fábrica de tecidos.
Em 1924, João Rubinato com apenas 14 anos, a família mudou-se novamente, dessa vez para Santo André. Lá, o jovem foi tecelão, pintor, encanador, serralheiro. Tudo coisa que exigia trabalho demais – e aí ele resolveu ser mascate, vender meias e retalhos pelas ruas. Desistiu: “Nunca aprendi a fazer negócio. Comprava um par de meia por dez mil réis, vendia por oito, para acabar logo com a mercadoria e me mandar pra casa. Não dava pé, nem meia, muito menos lucro”.
Trabalhou até como garçom, na casa de Pandiá Calógeras, aquele que foi ministro da Guerra. Aprendeu a profissão de metalúrgico-ajustador, no Liceu de Artes e Ofícios – e esses conhecimentos iriam ajudar o artesão de miniaturas, já perto do fim da vida. Mas, para o então rapaz, era um ofício duro, o trabalho com esmerilhamento de ferro fundido maltratando os pulmões. Vieram então outras profissões, como a de funcionário de loja de ferragens e entregador de tecidos em uma loja da 25 de Março.
A Rua 25 de Março ficava perto da Largo da Misericórdia, e no Largo da Misericórdia ficava a rádio Cruzeiro do Sul. Essa vizinhança apressou a entrada de João Rubinato no mundo que o transformaria em Adoniran Barbosa, “ um grande compositor e poeta popular, expressivo como poucos” – como diria, muitos anos mais tarde, o professor Antonio Cândido de Mello e Souza, na contracapa do segundo LP do artista.
O rapaz João Rubinato já havia até feito algumas músicas; ele gostava de inventar melodias e letras enquanto caminhava pelas ruas, em qualquer um de seus diversos empregos anteriores. Achava que eram músicas ruins, não as mostrava para ninguém – esqueci-as, simplesmente, ou as jogava fora. Mas ficava sempre rondando a rádio Cruzeiro do Sul, tentando encontrar uma brecha para trabalhar ali.
– Aos sábados, tinha a hora do calouro. Cismei e todo sábado me arriscava. Era só eu começar e lá vinha o congo. Mas eu não desistia. Um sábado, o homem do congo devia de está distraído e consegui chegar até o fim num samba do Noel, o “Filosofia”.
Foi contratado. Era o ano de 1933. Ano que vem (1983), portanto, ele faria 50 anos de carreira artística.
Quase 50 anos de carreira
A fama e o reconhecimento nacionais iriam demorar quatro décadas, mas já em 1935 o ex-tanta-coisa João Rubinato obteria um prêmio. Com a marchinha “Dona Boa”, feita em parceria com J. Aiberê, ganhou um concurso de músicas carnavalescas promovido pela Prefeitura de São Paulo. Receberam, ele e o parceiro, um cheque de 500 mil réis; dias antes, Rubinato havia encomendado um paletó a um alfaiate e pretendia pagar a encomenda com o dinheiro do prêmio. Não pagou: gastaram o cheque numa farra com os amigos na Praça da Sé.
Foi naquele mesmo ano que passou a adotar o nome de Adoniran Barbosa: “João era horrível; onde já se viu sambista com nome de João?” Pegou o Adoniran de um amigo, Adoniran Alves; o Barbosa, tomou emprestado de Luis Barbosa, cantor de fama na época, “o rei do chapéu de palha”.
Adoniran Barbosa não se dedicou com exclusividade ao samba, a cantar e a compor. Foi cantando e compondo, ao longo dos anos, mas ao lado de outra atividade, que o tornou muito mais conhecido, na época, do que o ofício do sambista – a de artista de rádio. Foi disc-jockey, foi locutor, foi ator de programa humorístico.
A partir de 1941, passou a trabalhar na Rádio Record. Foi lá que ficou amigo de Osvaldo Molles, autor de textos para diversos programas, inclusive humorísticos. Molles seria o parceiro de Adoniran em diversos sambas que ficaram famosos, como “Mulher, patrão e cachaça”, “Pafunça”, “Conselho de Mulher”, “O casamento do Moacir”. Mas, naqueles primeiros tempos de amizade, Molles iria criar para Adoniran vários tipos que fizeram grande sucesso no rádio paulista, como o malandro Zé Cunversa, o judeu que cobrava prestações, Moisés Rabinovic, o galã de cinema francês Jean Rubinet (notem a brincadeira com o nome de batismo de Adoniran), o motorista italiano Perna Fina.
O linguajar de muitos desses tipos populares influenciou bastante as letras das composições de Adoniran, onde o povo fala como o povo fala, e não como se lê nos livros. Não é – como observaria o professor Antonio Cândido – um português com sotaque de italiano. Mais que isso, é a reconstituição perfeita (e muitas vezes engraçada) da mistura de diferentes sotaques e entonações de migrantes que se juntaram em São Paulo. Uma mistura que se misturava também com o português mal falado das classes baixas, que Adoniran sempre retratou nas suas composições.
Várias delas tiveram seus méritos reconhecidos, através de prêmios e da divulgação em rádio, já nas décadas de 40 e 50. O próprio Adoniran gravou “Saudosa Maloca”, em um 78 rotações de 1951, assim como gravou o “Samba do Arnesto” em 1953. Mas essas duas músicas – duas das que são as mais conhecidas do autor, até hoje – só se tornariam grandes sucessos quando regravadas, em 1955, pelo conjunto Demônios da Garoa.
O conjunto era formado por amigos de Adoniran, que inclusive os acompanhou em diversas apresentações pelo Estado de São Paulo na década de 50 e início da de 60. Em São Paulo, os Demônios da Garoa sempre foram um sucesso, especialmente entre a classe mais pobre, aquela que era e sempre foi a preocupação do compositor em suas músicas. Mas o conjunto apresentava um som muito regional, muito “caipira” que não permitia que a obra de Adoniran fosse conhecida fora dos limites do Estado.
Assim, Adoniran continuou, por muito tempo, mais conhecido como a voz engraçadíssima do programa humorístico “História das Malocas” (sucesso de 1955 a 1965 na Record, chegando até a ser levado para a televisão), no papel de Charutinho, mais uma criação de Osvaldo Molles, do que propriamente como um grande compositor popular.
Isso apesar de ele continuar escrevendo músicas que venciam concursos e alcançavam sucesso de público. Como, por exemplo, o “Trem das Onze”, que venceu o concurso de músicas de carnaval instituído para comemorar o quarto centenário do Rio de Janeiro, em 1965.
Adoniran Barbosa só entraria num estúdio, entretanto, para gravar seu primeiro LP, em 1973, aos 63 anos de idade. E só o fez porque o produtor J. C. Botezelli, o Pelão, insistiu em vender a idéia de fazer um LP com ele para a gravadora Odeon. Vendeu relativamente bem, segundo a gravadora. Assim como o segundo LP, lançado dois anos depois, em 1975.
Foi só por essa época que veio o reconhecimento farto, generoso, de toda a imprensa, dos meios de comunicação, para a arte de Adoniran e sua importância. Nos últimos anos de vida, deu milhares de entrevistas, gravou programas para a tevê (como compositor, e não mais como humorista). Para comemorar seus 70 anos, organizou-se grande festa, o dia inteiro, no bairro do Bexiga, com a presença de diversos artistas, e o lançamento de um álbum milionário, reunindo as vozes de Elis Regina, Clara Nunes, Djavan, Gonzaguinha, MPB-4, Carlinhos Vergueiro.
O inquieto, o impaciente Adoniran Barbosa preferia ter tido tudo isso mais cedo.
“Adoniran é dos tais que não foram feitos para morrer”
Alguns depoimentos sobre Adoniran Barbosa para o Jornal da Tarde:
Antonio Cândido, professor e ensaísta: “Adoniran é dos tais que não foram feitos para morrer; sempre teve muita vida e a gente só o imagina pulsando com a cidade dele. Há alguns anos escrevi a seu respeito algumas coisas que mantenho. Por exemplo: ‘Adoniran Barbosa é um paulista de cerne que exprime a sua terra com a força da imaginação alimentada pelas heranças necessárias de fora. Já tenho lido que ele usa uma língua misturada de italiano e português. Não concordo. Da mistura, que é o sal de nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das escolas, se aliaram com naturalidade às deformações normais do português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumo e não encontremo ninguém, exatamente como por todo este país.’ Quanto ao mais, só resta continuar ouvindo os discos dele. A gravatinha borboleta acabou. Mas a voz rouca permanece por obra da técnica”.
Elizeth Cardoso, cantora: “ Estive com ele algumas dias depois da morte de Elis Regina, em São Paulo, e ele estava bem. Pelo menos parecia, porque não era possível saber se o Adoniran tinha algum problema, porque o jeito dele era sempre o mesmo. Cigarro numa mão, aperitivo na outra e a mesma humildade e simpatia, tratando a todos com muito respeito. Eu nem sei direito o que estou falando. A gente fica muito triste quando morre um amigo como o Adoniran”.
Moreira da Silva, cantor e compositor: “É fogo, rapaz. Acho que vou ser mesmo o último dos moicanos. Os amigos vão passando, o Juruna foi até eleito e eu estou aqui, levando esses choques. Adoniran foi o maior músico paulista e “Trem das Onze” é uma música que não morrerá nunca. Lamento não ter aceito um convite para me apresentar há duas semanas, com Adoniran, em São Paulo, porque já tinha um compromisso em Recife. Mas no fim, foi até bom, senão eu ficaria mais chocado ainda, e na minha idade, 80 anos e oito meses, não posso estar levando muitos choques. Para mim, Adoniran era uma pessoa sem defeitos ou inimigos: é claro que ele gostava de um limãozinho, você sabe, nisso não dava para acompanhá-lo. Cobertor de pobre é batida de limão”.
Aloísio Falcão, coordenador da programação da Rádio Eldorado e coordenador artístico do selo Eldorado: “ Adoniran já tinha até credencial da rádio, pois todos os dias ele almoçava no centro da cidade e depois fazia a sesta no sofá, que ficou conhecido como o ‘ sofá do Adoniran’. Adoniran é a maior expressão do samba em São Paulo e quem quiser conhecer a obra dele precisa ouvir o disco feito há dois anos, gravado pela Odeon e produzido por Fernando Faro. O disco é uma espécie de despedida e tem participações especiais de Clementina de Jesus, Clara Nunes, Elis Regina, Djavan, Carlinhos Vergueiro, Gonzaguinha, MPB-4, Conjunto Nosso Samba, Roberto Ribeiro, Talismã e Vânia Carvalho. E entre as músicas escolhidas estão “Tiro ao Álvaro”, “Fica mais um pouco,amor”, “Bom dia, tristeza”, “Apaga o fogo, Mané” e outras mais”.
Elifas Andreato, ilustrador: “Estou muito emocionado, e se de certa forma estava esperando por esse momento, quando vem é sempre com dor. Acabo de terminar um projeto sobre uma semana comemorativa para a Elis Regina e um dos grandes personagens seria o Adoniran. Além disso eu sempre achei que a cidade deveria ter um monumento ou uma praça para homenagear o Adoniran enquanto ele estivesse vivo, mas não deu tempo. A visão que tenho do Adoniran está expressa em um desenho que fiz dele e que deveria ser capa do seu último disco. A Odeon achou que o Adoniran não entenderia, porque desenhei o Adoniran vestido de palhaço e acabei fazendo outra capa. O primeiro desenho dei para o Fernando Faro, que colocou na parede de sua casa. Um dia, o Adoniran foi lá, viu o desenho e ficou bastante emocionado.”
Adoniran….
queriaaa mtoo ir num sambaa com ele cantando!!
De pensar q hj tem Restart, Cine… aff
a músikaa brasileiraa vai piorandoo..!
saudadesssssssssssssss
Admirador de Adoniram fiz o Samba Paulistano INSPIRADO em seu excelente repertório, cuja letra anexo:
SAMBA PAULISTANO
AUTOR: MANO MARTINS – MANUEL MARTINS TEIXEIRA PINTO
QUANDO EU VIVI / NO MEIO DO MATO / LÁ EM JUNDIAÍ
SENTIA UM FRIO DANADO / IGUAL NO RIO / NUNCA SENTI.
HOJE NA CAPITAL / TÁ UM CALOR DANADO / ATÉ NO PARQUE.
CAUSA DO PROGRESSO / DO TRABALHO / QUE VOCÊ CANTOU
A CIDADE CRESCEU / TEM ARRANHA-CÉUS / POR TODO LADO
MEU DEUS DOS CÉUS / QUE SE VAI FAZER REFRÃO
SÃO PAULO / SÃO PAULO / NÃO PARA DE CRESCER.
LÁ NO MERCADÃO / DERAM MESA E CADEIRA / PRÁ VOCÊ SENTAR
ESPERAR FREGUÊS / COMER PASTEL / E COMPRAR FAROFA;
E NO BIXIGA / ONDE VOCÊ ANDOU / NAS RUAS DE OUTRORA;
VOCÊ ESTÁ NO PEDESTAL / DA FEIRA DE CACARÉUS / NA PRAÇA PRINCIPAL.
SINTO FALTA DA GAROA / DA MADRUGADA / NA VINTE CINCO DE MARÇO.
NA VOLTA DA CIDADE / TINHA QUE USAR CHAPÉUS / DA SÉ À LIBERDADE
MEU DEUS DOS CÉUS / QUE SE VAI FAZER REFRÃO
SÃO PAULO / SÃO PAULO / NÃO PARA DE CRESCER.
HOJE, ADONIRAN QUERIDO / TANTA AGITAÇÃO / NA CAPITAL FALTA AMOR .
ACHO QUE DEUS MANDOU / TODO ESSE CALOR / PRÁ TIRAR O COBERTOR.
VOU VOLTAR PRÓ INTERIOR / PESCAR NO RIBEIRÃO / VOLTO QUANDO DER SAUDADE.
DO PASTEL DE MORDANDELA / DA FEIRA DE CACARÉUS / DAS ORIENTAIS DA LIBERDADE.
MEU DEUS DOS CÉUS / QUE SE VAI FAZER REFRÃO
SÃO PAULO / SÃO PAULO / NÃO PARA DE CRESCER.