O disco que apresentou a bossa nova. Não, não é de João Gilberto

Está de volta às lojas, reeditado há poucos dias (o texto é de 1981) pela PolyGram, um LP importantíssimo, um marco histórico da música popular brasileira. Seu lançamento original foi há 23 anos – quando, portanto, boa parte do público que consome disco no país estava engatinhando, ou nem isso. Chama-se Canção do Amor Demais e nele a já então veterana e consagrada Elizeth Cardoso canta as músicas assinadas por parceiros então recentes – dois dos maiores nomes da MPB, Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes.

A capa do disco não diz, o selo também não – mas o violão que se ouve logo na primeira faixa do lado A é de um rapaz tido, naquele ano de 1958, como muito promissor: João Gilberto.

canção1Canção do Amor Demais é citado em todos os registros sobre a música popular brasileira como um marco fundamental. Como um desses raros e básicos divisores de águas. Mas ele não é ainda o lançamento oficial da bossa nova – esse que, ao lado do tropicalismo, é sem dúvida o maior e mais revolucionário movimento que a MPB já conheceu. Não. Este LP é, antes, uma espécie de último ensaio geral antes do grande salto que seria a bossa nova. Poucos meses depois do ensaio geral que é este Canção do Amor Demais é que Tom, Vinicius e João lançariam oficialmente a bossa nova, no primeiro LP de João, de março de 1959, Chega de Saudade.

A música “Chega de Saudade” (Tom-Vinicius), aliás, é justamente a primeira faixa do LP de Elizete Cardoso. E lá está, pela primeira vez em um disco que fez sucesso, a batida de violão diferente, personalíssima, que seria um dos símbolos do novo movimento. Lá está, por exemplo, a mesma flauta que abriria a faixa gravada pelo próprio João, meses mais tarde.

Mas não são exatamente os mesmos arranjos que Tom criaria para o disco de João. Estes – aí, sim, já a bossa nova em sua forma plena – seriam mais simples, mais despojados de traços grandiloqüentes, como as grandes entradas de cordas presente no disco de Elizete.

Neste Canção do Amor Demais, conforme observou o maestro Júlio Medaglia, no seu Balanço da Bossa Nova, publicado no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo em 1966, “o acompanhamento e a orquestração eram em geral sinfônicos e com instrumentação carregada. Note-se que o próprio Jobim, que orquestraria o disco de João alguns meses mais tarde, teria uma atitude completamente diferente ao trabalhar ao lado do ‘baiano bossa- nova’, evitando as soluções ‘melacrinianas’ de ‘mil violinos’ e ‘glissandros’ de harpas, recurso tão comumente empregados pelos orquestradores de rotina”.

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A interpretação de Elizeth não é, também, exatamente a interpretação mais simples, coloquial, intimista, de João Gilberto. Mas sua inegavelmente bela voz está esplêndida, cantando os versos do poeta Vinicius e as harmonias do maestro Jobim, em canções como “As praias desertas”, “Caminho de pedra”, “Janelas abertas”, “Eu não existo sem você”, “Medo de amar” e “Outra vez” (nesta última faixa, João Gilberto também está presente ao violão; ele mesmo regravaria a música no seu terceiro disco, O amor, o sorriso e a flor, de 1960)

Várias músicas lançadas neste disco de Elizeth são obras-primas, e se tornariam clássicos que influenciariam enormemente novas gerações de compositores. (Para lembrar: em 1971, Caetano Veloso escreveria uma música chamada “Janelas abertas nº 2”; em 1978 Simone gravaria uma música chamada “Medo de Amar nº 2”, de Sueli Costa e Tite de Lemos.) Algumas das composições de Tom e Vinicius lançadas por Elizeth, e que fizeram muito sucesso lá em 1958, continuam tocando no rádio até hoje – no rádio, onde o que tem um ano já costuma ser tido como velho. “Chega de Saudade”, por exemplo, foi uma das músicas mais aplaudidas, senão a mais, nas apresentações de João Gilberto no Municipal, mês passado (ou seja: agosto de 1980).

Mas o marco histórico que é este Canção do Amor Demais não é apenas para saudosistas, ou para quem acompanhou a bossa nova desde os primórdios. É excelente para que as gerações mais novas tenham a oportunidade de entender melhor o que foi o grande salto introduzido na MPB por músicos como Tom, Vinicius e João. Porque, sem dúvida, conhecer melhor a revolução de 23 anos atrás ajuda muito a se compreender os novos saltos que estão se dando hoje, por gente como Arrigo Barnabé ou Itamar Assunção. E os que ainda estão para vir.

A historinha por trás do texto

Nem chega a ser propriamente uma historinha – são só dois pequenos registros. O primeiro é que este texto foi uma pauta minha, uma idéia minha que vendi para a editoria de Variedades. Fui “crítico” de MPB no Jornal da Tarde entre janeiro de 1981 e junho de 1984, um crítico meio de segunda classe, que era chamado para fazer alguma coisa quando os críticos de verdade – Maria Amélia Rocha Lopes e Wladimir Soares – estavam muito ocupados. Mas, quando Canção de Amor Demais foi relançado, eu propus fazer um texto sobre o disco. 

O segundo ponto é a grafia do nome de Elizeth. Afinal, é Eliseth, Elizeth, Elizete, Elisete? Bem, aí, como diria o Lula, vareia. Tem de tudo no Google. Tenho três LPs que grafam Elizeth. A impecável caixa da Biscoito Fino, reunindo quatro CDs, grafa Elizeth. A igualmente impecável Enciclopédia da Música Brasileira grafa Elisete – nas duas edições, a original, de 1977, e a “revista e atualizada”, de 1998.

Fico com a grafia dos discos de Elizeth.  

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