Michelangelo

Quase aos gritos, eles discutem:

– Vocês, escultores, trabalham com os músculos, com a força do braço, com o suor imundo.

– Você, que diz que a pintura é mais nobre que a escultura, não sabe nada, não entende nada.

Os dois homens estão em uma das ruas de Florença, falando alto, gestos exaltados, insultos. O primeiro retruca:

– Com a poeira do mármore no corpo você mais parece um padeiro. Sua casa é uma imundície de lascas de pedra, de poeira…

Volta o segundo:

– Se você entende de todas as coisas como entende disso, posso garantir que minha arrumadeira sabe bem mais que você.

Novos gritos, novos gestos, entra a turma do deixa disso e os dois se afastam, gritando ainda.

O primeiro vai para casa e concentra-se no cavalete em que está pintando sua Monalisa: é Leonardo da Vinci. O segundo chega à Piazza della Signoria e vê o Davi que acabara de esculpir: é Michelangelo Buonarroti. Respeitam tanto o trabalho um do outro que se odeiam.

AV001628Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni nasceu no distrito de Cosentino, em Caprese, uma pequena vila perto de Arezzo, na Toscana, às margens do Arno. Era o dia 6 de março de 1475, um domingo, por volta das oito da noite; Mercúrio o ascendente direto, com Venus entrando na casa de Júpiter. Sua mãe foi Francesca di Neri del Miniato del Sera, descendente dos nobres condes de Canossa, e seu pai Lodovico di Lionardo Buonarroti Simoni, que na época tinha em Caprese um cargo equivalente a prefeito, provavelmente seu primeiro emprego.

Os Buonarroti eram uma família de projeção e sucesso até poucos anos antes, quando o avô de Michelangelo, que vivia de rendas e juros, perdeu todo seu capital. Lodovico e um irmão herdaram uma casa e uma pequena fazenda. Consta que o pai de Michelangelo foi um homem medíocre, orgulhoso demais para trabalhar para viver, e pobre demais para viver bem, capaz de dar ao filho conselhos como este:

“Acima de tudo, tenha cuidado com sua cabeça. Mantenha-a moderadamente aquecida, e nunca se banhe. Limpe-se, mas nunca tome banho.”

Michelangelo tinha apenas algumas semanas de vida quando a família mudou-se para Florença, e ele foi entregue aos cuidados de uma ama de leite, na fazenda dos pais, em Settignano, porque a mãe estava ocupada demais com Lionardo, seu irmão mais velho, de pouco mais de um ano. Settignano era uma região que tinha pedras em abundância, e tanto o pai de sua ama de leite, como o marido, trabalhavam cortando pedras.

– Se tenho alguma inteligência – diria Michelangelo anos depois – foi por ter nascido no ar puro de Arezzo, e por ter bebido, junto com o leite de minha ama, o martelo e o cinzel com que faço minhas figuras.

Em um ponto ainda indeterminado de sua vida, entre os sete e os dez anos de idade, foi levado pelo pai para a escola de gramática de Francesco da Urbino – queriam fazer dele um homem de letras. Para desgosto da família, entretanto, o garoto queria desenhar. Apanhou muito do pai por causa disso: um Buonarroti desenhista? Lodovico não podia suportar tal idéia.

Um grande amigo dele, naquela época, era Francesco Granacci, um jovem aprendiz de pintura no ateliê de Domenico Ghirlandaio, que era considerado um dos grandes mestres em atividade. Granacci levava para Michelangelo esboços que Ghirlandaio lhe dava, e Michelangelo os copiava. Lodovico demorou a admitir que não conseguiria afastar o garoto do lápis e do papel, mas enfim, ouvindo o conselho de amigos, e com esperança de obter algum proveito, resolveu levar Michelangelo a Ghirlandaio. Não se sabe exatamente o que Michelangelo já havia aprendido até então, como também não se sabe como aprendeu a esculpir, mas o fato é que não começou como um aprendiz comum, porque, em vez de pagar pelas lições, Ghirlandaio é quem lhe pagava um salário.

Mais tarde, quando se tornou famoso, fez questão de lançar sombras sobre esse período: jamais admitiu ter sido um aprendiz como outros. É daqueles dias uma anotação que Lodovico deixou entre seus papéis:

“1488. Neste dia, o primeiro de abril, registro que eu, Lodovido di Lionardo di Buonarroti, coloquei meu filho com Domenico e David di Tommaso di Currado pelos próximos três anos com estes acertos e acordos: que o dito Michelangelo deve permanecer com os acima citados pelo período estipulado, para aprender a pintar e praticar esse negócio, e para fazer tudo o que os acima citados lhe ordenarem fazer, e, durante esses três anos, os mencionados Domenico e David devem lhe dar vinte e quatro florins novos – seis no primeiro ano, oito no segundo e dez no terceiro, num total de 96 liras”.

O aprendizado foi de dois anos, e o garoto não demorou a surpreender. Ghirlandaio utilizava uma técnica de bico de pena com traços rápidos e cruzados, para delimitar luz e sombra, e Michelangelo aprendeu e aperfeiçoou o método, com traços mais vigorosos. Ele passou a copiar Masaccio e Giotto nesse período, além de seu mestre, que em várias ocasiões teve a audácia de corrigir. Outra técnica que aprendeu foi a dos afrescos: Ghirlandaio havia começado a pintar a capela de Santa Maria Novella, e Michelangelo seguia atentamente seu trabalho.

Uma característica do professor, que se tornou paixão para o aluno: admirar arte antiga. Michelangelo copiava mestres da antiguidade com perfeição, e desenvolveu um recurso, “envelhecendo” seus desenhos com fumaça e outros artifícios, que tornava muito difícil, e às vezes impossível, distinguir a cópia do original. Aqui, a bem da verdade, é preciso registrar que fazia isso também por malandragem, porque muitas vezes guardou para si o original, e devolveu a cópia. Isso ficou registrado na biografia que fez dele Giorgio Vasari, pintor florentino, o primeiro a fazer crítica de arte, seu contemporâneo e amigo.

A qualidade de seu trabalho começava a destacá-lo entre os aprendizes do ateliê. Ele se destacou mais ainda ao copiar uma gravura, feita em cobre por Martin Schongauer, segundo Vasari (que também já a atribuiu a Albrecht Dürer), que havia chegado a Florença. A gravura mostrava Santo Antônio sendo atacado por demônios. Michelangelo fez a cópia em bico de pena e a coloriu, mas, antes de aplicar as cores, foi ao mercado comprar peixes. Então, levou os peixes para o ateliê e copiou a escala de tons de suas escamas na pintura dos demônios. Todos ficaram muito impressionados com o resultado.

Havia alguém, entre os alunos de Ghirlandaio, que pudesse interessar-se por escultura? Foi o que lhe perguntou Lorenzo de Medici, o Magnífico. Em seu jardim, perto da Piazza San Marco, Lorenzo havia colecionado um grande número de antiguidades, pelas quais pagou muito dinheiro. Ele mantinha um grupo de jovens artistas, que estudavam pintura e escultura, viu que vários deles certamente se tornariam excelentes pintores, e estava preocupado em formar também escultores, porque a pintura florescia naquela época, mas a escultura, nem tanto. Por isso, no jardim, entre suas antiguidades e os jovens artistas, ele tinha sob contrato o escultor Bertoldo Giovanni, ex-aluno de Donatello, encarregado de ensinar a arte da escultura. Teria Ghirlandaio um bom candidato para essas lições?

Ghirlandaio enviou-lhe alguns de seus melhores discípulos, entre eles Francesco Granacci e Michelangelo. Que encontraram lá, trabalhando em figuras de argila, sob orientação de Bertoldo, o jovem Pietro Torrigiani, da família Torrigiani. Michelangelo examinou as figuras de argila e passou a fazer algumas ele mesmo, tornando-se um rival cordial de Pietro. Lorenzo logo o notou, e passou a incentivá-lo.

Encontrando, entre as antiguidades do jardim, a cabeça danificada de um velho fauno, de nariz quebrado e boca sorridente, Michelangelo pegou um pedaço de mármore e passou a copiá-la. Vasari escreveu que foi esta a primeira vez que ele empunhou um cinzel para esculpir, mas o fez tão bem que deixou Lorenzo realmente impressionado. Ele não fez apenas uma cópia. Soltou sua imaginação e abriu o sorriso do fauno, fazendo-o de boca aberta, a língua e os dentes à mostra.

   Admirado, Lorenzo brincou com ele:

– Você deveria saber que os velhos nunca têm todos os dentes, que alguns deles sempre faltam.

Assim que Lorenzo se foi, Michelangelo pegou o martelo e o cinzel, quebrou um dos dentes do fauno e esculpiu uma cavidade ali, como se ele tivesse o dente arrancado pela raiz. E ficou esperando, ansioso, pela volta de Lorenzo. Que só voltou no dia seguinte e, vendo o que Michelangelo havia feito, riu muito e o cumprimentou pela simplicidade com que resolveu o problema, e pelo ótimo resultado. O episódio divertiu Lorenzo, que o contou a todos os amigos; depois, procurou o pai do jovem aluno e pediu-lhe que permitisse a Michelangelo mudar-se para sua casa, onde o trataria como filho. Lodovico concordou.

Àquela altura Michelangelo já começava a despertar o ciúme e a inveja de alguns de seus colegas, especialmente de Pietro Torrigiani. Não apenas porque seu trabalho adquiria qualidade e reconhecimento, mas também porque desenvolvia uma ironia e uma dose de arrogância que o acompanhariam pelo resto da vida. Certa vez, quando já avançado em anos e, portanto, famoso, foi procurado por alguém que havia pintado uma Pietá, e queria sua opinião. O trabalho não era muito bom. Michelangelo observou-o, olhou bem para seu autor e respondeu com um trocadilho:

– Si, é veramente una pietá vederla (é realmente uma pena vê-la).

Em outra ocasião, apresentaram-lhe um garoto com muitas recomendações, e o garoto trazia um desenho que havia feito. A expressão de Michelangelo ao ver o desenho deve ter significado alguma coisa, pois imediatamente os circunstantes passaram a defender o garoto, dizendo que apenas há muito pouco tempo ele havia começado a desenhar.

– Isso é óbvio – respondeu.

Mas, na juventude, em pelo menos uma ocasião ele se deu mal. O incidente foi contado por Pietro Torrigiani a Benvenuto Cellini, o grande escultor:

– Buonarroti e eu costumávamos ir juntos, quando garotos, estudar a capela de Masaccio na igreja do Carmine. Buonarroti tinha o hábito de ironizar todos os que estavam desenhando ali, e um dia ele me provocou tanto que perdi a cabeça. Dei-lhe um tal murro no nariz que senti o osso e a cartilagem quebrando como se fossem biscuí. Então aquele sujeito vai carregar a minha assinatura até a morte.

De fato, Michelangelo carregou aquele nariz torto de boxeador pelo resto da vida. Mas, segundo Vasari, o motivo do formidável soco foi ciúme e inveja, e não provocação.

Michelangelo tinha 15 anos quando foi morar na casa de Lorenzo, onde conviveu com Bertoldo, com o poeta Angelo Ambrogini, chamado Poliziano, e os filhos de Lorenzo, entre eles Giovanni, futuro Papa Leão X, Giuliano e Giulio, mais tarde Papa Clemente VII.

Sob a orientação de Bertoldo Giovanni, ele dificilmente deixaria de estudar Donatello, e o fez principalmente em um baixo-relevo, a Madona dos Degraus, que executou no estilo do mestre e foi sua primeira escultura religiosa.

Poliziano gostou muito de Michelangelo, incentivou-o em seus estudos e contou-lhe muitas histórias, sugerindo que trabalhasse com elas. Uma foi a mitológica batalha dos gregos com os centauros, que resultou em um alto-relevo em mármore retratando um grupo de homens em batalha, os torsos retorcidos, formando um conjunto de muita força. Pela lenda, metade daqueles homens eram centauros, mas Michelangelo os retratou de maneira tal que os corpos de cavalo não aparecem. Ele abordava assim, pela primeira vez, um tema que retomaria ao logo de toda a vida: figuras poderosas de homens nus. Esse relevo foi terminado por ele logo depois da morte de Lorenzo, quatro anos após sua chegada à casa dos Medici, em 1492.

Voltou então para a casa do pai e concentrou-se no estudo de anatomia. Fazia isso no hospital do Espírito Santo, onde o prior permitia que dissecasse os corpos dos mortos. Em agradecimento, ele esculpiu um crucifixo em madeira, que foi colocado no altar da capela.

Sem encomendas, resolveu trabalhar para seu próprio prazer. Comprou um grande bloco de mármore e esculpiu um Hércules, que ofereceu e vendeu para a família Strozzi.

O patrono dos Medici, então, era Piero, o filho mais velho de Lorenzo, que intelectual e politicamente ficava quilômetros atrás do pai, e cultivava estranhos caprichos. Uma pesada nevasca havia caído sobre Florença, e Piero chamou Michelangelo para esculpir um boneco de neve em seu jardim. Michelangelo o fez, e deixou Piero tão satisfeito que o convidou para ir novamente morar em sua casa.

Não só a arte com o cinzel impressionava nele. Ao longo de toda sua vida os amigos admiravam também o seu raciocínio e as suas tiradas. Um dia vieram lhe contar que Sebastiano Veneziano ia pintar um frade na capela de São Pedro, em Montorio.

– Que pena – respondeu. – Isso vai arruinar a capela.

– Ora, por que?

– Veja, os frades já arruinaram o mundo, que é uma coisa muito grande. Não será difícil para eles arruinar uma capela, que é tão pequena.

Ele teve um amigo que se tornou padre, fazia pouco tempo que começara a rezar missa, e encontrou-se com ele, um belo dia, em Roma. Vinha todo enfeitado, com cintos dourados, sedas e capa, e o cumprimentou. Michelangelo fingiu não reconhecê-lo, o que o obrigou a dizer o nome.

– Ora, você me parece ótimo! – exclamou. – Se você fosse tão bonito por dentro como vejo que é por fora, isso faria muito bem à sua alma.

Florença vivia tempos difíceis em 1494: estava entrando em recessão econômica e era agitada por inquietações religiosas. Girolamo Savonarola, frei dominicano, fazia turbulentas pregações, denunciando a vida pecadora dos florentinos e a corrupção da Igreja, e profetizava castigos terríveis que se abateriam sobre Florença. Dando ainda mais peso às palavras de Savonarola, o rei francês, Carlos VIII, invadiu a Itália. Tudo isso inquietava bastante Michelangelo, e talvez a gota d’água tenha sido a morte de Poliziano, em setembro. O fato é que, no início de outubro, ele deixou Florença pela primeira vez.

Foi inicialmente para Veneza, ficando pouco ali, partindo em seguida para Bolonha, onde teve a sorte de ser procurado por Gianfrancesco Aldrovandi, um intelectual rico, conhecedor da cultura e literatura florentinas, que o convidou para ficar em sua casa. Aldrovandi foi extremamente gentil com Michelangelo, a quem homenageava seguidamente. Michelangelo, por sua vez, lia para ele todas as noites, até que dormisse, trechos de Dante, Petrarca e Boccacio. Aldrovandi era apaixonado por sua pronúncia toscana.

Ficou um ano na casa de Aldrovandi, que lhe conseguiu algum trabalho, especialmente três estatuetas – um anjo com um castiçal e dois santos – para o túmulo de São Domênico. Depois disso, em 1495, voltou para Florença.

– Quero que você me faça uma estátua de São João Batista, em mármore – disse-lhe Lorenzo di Pierfrancesco de Medici, um primo de Lorenzo, o Magnífico.

Michelangelo fez o São João para Lorenzo e, em seguida, com um bloco de mármore que havia comprado para si próprio, esculpiu um cupido adormecido. Ele o fez em tamanho natural, ou seja, no tamanho que se acreditava terem os cupidos, e o mostrou a Lorenzo e a um amigo dele, Baldassare del Milanese, um comerciante.

– Se você o enterrar – disse Lorenzo – tenho certeza de que passará por uma peça antiga. E se você o mandar para Roma, dando-lhe um tratamento para que pareça velho, conseguirá mais dinheiro do que o vendendo aqui.

– Vou tratá–lo para que pareça antigo – respondeu Michelangelo – e depois o darei a Baldassare, para que o leve para Roma e veja se o vende lá.

Vasari registrou, na biografia, que realmente Michelangelo deixou seu cupido parecendo antigo.

“Ninguém deve se espantar com isso – escreveu ele – já que ele era suficientemente genial para fazer isso e muito mais”.

Comentou–se na época que, chegando a Roma, Baldassare del Milanese enterrou o cupido em um vinhedo de sua propriedade, e mais tarde, quando o desenterrou, ofereceu-o ao Cardeal Raffaele Riario, dizendo que se tratava de uma antiguidade. O Cardeal, um colecionador, comprou-o por 200 ducados.

Baldassare escreveu para Lorenzo que havia vendido a peça a Riario por 30 escudos, e pedindo-lhe que desse essa importância a Michelangelo. Mais tarde, entretanto, alguém disse ao Cardeal que ele havia sido enganado, e este exigiu seu dinheiro de volta. Depois, admirado, mandou um mensageiro a Florença, com ordens para trazer o autor do cupido à sua presença – queria conhecer o artista capaz de tal façanha.

Quando chegou a Roma, Michelangelo procurou logo Baldassare, pedindo o cupido e oferecendo-se para devolver os 30 escudos.

– Eu comprei o cupido e, se quiser, posso quebrá-lo em cem pedaços. Não há nada que me obrigue a devolvê-lo a você – respondeu ele.

Michelangelo, enfurecido, pulou sobre Baldassare, mas alguns amigos o seguraram.

– Vou recorrer ao Cardeal Riario – escreveu Michelangelo para Lorenzo de Medici, relatando o episódio. – Talvez o Cardeal o convença a devolver-me a criança (era como ele se referia ao cupido).

Baldassare não o devolveu. Em vez disso, tornou a vendê-lo, desta vez para Cesar Bórgia, o Duque Valentino (irmão de Lucrécia Bórgia), que o deu de presente à Marquesa de Mântova, que o levou para sua cidade. O cupido passou ainda pelas mãos de Isabella d’Este, antes de desaparecer. Hoje, está perdido.

Ainda em Roma, chamado pelo Cardeal Riario, Michelangelo foi visitá-lo. O Cardeal ficou feliz em vê-lo, e o levou para admirar a sua coleção de esculturas antigas.

– Você seria capaz de fazer peças tão lindas? – perguntou–lhe.

– Não seria possível para mim fazer maravilhas iguais, mas o senhor verá o que posso fazer. Começarei a trabalhar na segunda-feira.

Os registros são imprecisos quanto ao primeiro trabalho dele em Roma. Vasari diz que o cardeal não lhe fez encomenda alguma, enquanto outros biógrafos dizem que sim, por dois motivos: pertencia a ele o bloco de mármore que Michelangelo utilizou, e foi ele quem o manteve enquanto trabalhava. De fato, Michelangelo ficou com Riario quase um ano, e, em carta ao pai, dizia ter contas a acertar com o cardeal. Ele chegou a Roma a 25 de junho de 1496. No dia primeiro de julho de 97, escreveu:

– Não se admire por eu não ter voltado ainda, porque não pude terminar meus negócios com o cardeal, e não quero partir sem estar antes satisfeito e reembolsado pelo meu trabalho. Com esses grandes personagens a gente tem que ir devagar, uma vez que eles não podem ser pressionados; mas, em todo caso, espero deixar tudo esclarecido na semana que vem.

Para o cardeal Riario, ou para seu rico vizinho, o comerciante Jacopo Galli – ele também um colecionador de antiguidades e grande apreciador de esculturas – a história registra que o primeiro grande trabalho de Michelangelo, nesta sua primeira viagem a Roma, foi também a sua primeira obra-prima: Baco, que esculpiu aos 22 anos de idade. Consta que ele teria feito antes mais um cupido, encomendado por Galli, mas Baco foi um trabalho bem maior, não apenas em tamanho (tem dez palmos de altura), como em ambição. Vasari diz que Michelangelo pretendeu “alcançar uma maravilhosa combinação de várias partes do corpo e, mais particularmente, dar a ele o porte delgado do homem jovem, e as carnes e contornos da mulher”.

baco1O deus do vinho, na estátua de Michelangelo, é uma figura que a bebida tornou claudicante, a boca aberta, o olhar vesgo, cachos de uva rodeando a cabeça, uma taça de vinho na mão direita, uma pele de tigre na esquerda, junto com um cacho de uvas que um sátiro sorridente, com pés de cabra, está mordiscando.

Feito ou não sob encomenda de Riario, quem ficou com Baco foi Jacopo Galli, que o colocou em seu jardim, junto à coleção de antiguidades. Mais tarde, no século XVI, a estátua foi comprada por um dos duques da família Medici, que a levou para Florença, onde está hoje no Museo del Bargello.

O desafio seguinte foi a Pietá.

Havia em Roma um cardeal francês, Jean Bilhères de Lagranles, grande apreciador das artes, que pretendia deixar, em homenagem à cidade, e a ele próprio, um belo memorial. O cardeal desejava uma Pietá. É possível que Michelangelo mesmo tenha ido a Carrara procurar o mármore. O contrato, preparado por Jacopo Galli, e garantido por ele, rezava, em 27 de agosto de 1498, que Michelangelo faria, em prazo de um ano, e pelo preço de 450 ducados, “o mais lindo trabalho em mármore que haveria em Roma, um que nenhum artista vivo pudesse melhorar”.

Michelangelo levou não um, mas dois anos esculpindo – ele o fez entre os 23 e os 25 anos – e o cardeal, morto em 99, não chegou a ver a estátua terminada. Hoje, ela está na catedral de São Pedro, à direita de quem entra, protegida com um grosso vidro inquebrável, já que foi vítima de um louco, que a atacou a marteladas.

Os italianos nunca haviam visto algo parecido: o ambicioso contrato firmado por Galli fora fielmente cumprido, e até mesmo superado. Vale a pena conhecer a descrição de Giorgio Vasari:

pieta“Entre os lindos detalhes que ela (a estátua) contém, além das inspiradas dobras da vestimenta, a figura do Cristo se destaca, e ninguém poderia imaginar – dadas à beleza de seu corpo e à perícia com que foi esculpido – ver um nu tão bem dotado de músculos, veias e nervos talhados sobre os ossos, ou a figura de um homem morto que mais se assemelhasse a um corpo morto do que esta. A expressão de seu rosto é tão gentil, e há grande harmonia nas juntas e articulações dos braços, torso e pernas, e seus tão bem forjados pulsos e veias que, na verdade, é absolutamente surpreendente que a mão de um artista possa haver tão apropriadamente executado algo tão sublime e admirável em tão pouco tempo e, claramente, é um milagre que uma pedra, sem formas no início, pudesse ser trazida a um estado de perfeição tal que a Natureza luta para criar na carne. Michelangelo colocou tanto amor e suor neste trabalho (algo que não fez em nenhum outro) que deixou seu nome escrito na faixa que cruza o peito de Nossa Senhora.”

Originalmente, não havia a assinatura de Michelangelo. Aconteceu que, um dia, quando ele entrava na igreja em que a estátua fora colocada, viu um grande grupo de turistas da Lombardia, que a cercava e elogiava muito. Um deles, dirigindo-se a um amigo, perguntou quem a havia feito. “Nosso Gobbo, de Milão”, foi a resposta. Michelangelo nada disse; apenas achou muito estranho que um trabalho seu fosse atribuído a outro. Uma noite, carregando um candelabro em uma das mãos, e suas ferramentas na outra, trancou-se na igreja. Pela manhã, sua assinatura estava lá.

A figura da Pietá – a Virgem acolhendo nos braços e no colo o corpo do Cristo morto – foi feita pela primeira vez na Alemanha, e imagens como ela, na escultura e na pintura, passaram pela França (a razão da escolha do cardeal francês); em 1497 (segundo estudiosos), chegaram à Itália.

A versão de Michelangelo foi o que realmente o lançou para a fama. Toda a graça e beleza do conjunto se deve, em parte, a ilusões de ótica. Ele foi concebido em formato triangular, para atingir o equilíbrio, e a Virgem é bem maior que seu filho (se estivesse em pé, revelar-se-ia um gigante de 2,13 metros de altura). Suas vestes são enormes, e se esparramam pelas rochas ao redor, porque só assim foi possível abrir espaço para o corpo do Cristo. Michelangelo criou os dois rostos mais lindos que conseguiu, e então foi ironizado por alguns críticos, porque a Mãe se revela bem mais jovem do que o Filho. “Bobagem”, dizia ele, e respondia:

– Vocês não sabem que as mulheres castas retêm o seu frescor por muito mais tempo do que as não castas? E quanto tempo mais o reteria, portanto, uma Virgem nunca atingida pelo menor desejo não casto? E eu lhes digo, sobretudo, que tal frescor e juventude, além de serem mantidos por causas naturais, é bem possível que tenham sido ordenados pelo Poder Divino, para provar ao mundo a virgindade e a perpétua pureza da Mãe… Não se espantem que eu tenha, por todas essas razões, feito a mais Santa Virgem, Mãe de Deus, muito mais jovem, em comparação com o seu Filho, do que aquilo que é usualmente feito.

Se havia ou não ironia nessas palavras de Michelangelo, não é possível dizer. Vasari registrou que “a sua maneira de falar era velada e ambígua, seu discurso tendo sempre um duplo sentido”.

Enquanto Michelangelo dava as cinzeladas finais na Pietá, a vida em Florença se modificava. Em 1494 os florentinos haviam expulso Piero de Medici da cidade, revoltados porque ele negociou e pagou uma alta soma para que o rei francês Carlos VIII não os atacasse. Além do banimento, os Medici tiveram seus bens confiscados. Depois de atingir o pico de sua influência, entre 1497 e 98, queimando em praça pública “objetos do pecado”, como baralhos, cosméticos, jóias e semelhantes, o frei dominicano Girolamo Savonarola intensificou seus ataques aos “vícios papais”, e acabou excomungado. Foi preso, torturado, enforcado e queimado como herege no centro da Piazza della Signoria, a 23 de maio de 98. Havia uma constituição republicana em processo de mudança, foi criado o cargo de chefe do executivo, Gonfaloniere, eleito por toda a vida, em 1501, e no ano seguinte um amigo de Michelangelo, Pietro Soderini, tomou posse.

Michelangelo voltou à sua cidade, passando por Siena, em maio de 1501, e logo concentrou sua atenção sobre um bloco de mármore, de 5,49 metros de altura, abandonado em um terreno próximo à catedral. O mármore tinha um apelido, “O Gigante”, e uma história. Havia sido comprado em 1464 em um programa que visava adornar a catedral com grandes estátuas de profetas. Não era um programa novo. Ele vinha do século anterior, e uma primeira estátua, o primeiro gigante da Renascença, havia sido esculpida em 1410 pelo grande Donatello. Então, na década de 60, com a volta de Donatello a Florença, ele foi retomado, com uma encomenda ao escultor Agostino di Duccio. Duccio fez um Hércules gigantesco, que terminou em 64, quando novo bloco foi comprado para ele.

Aparentemente, era a influência de Donatello que garantia o trabalho de Agostino di Duccio, porque logo após sua morte, em 66, a encomenda foi cancelada. Novo contrato teria sido feito em 1476, desta vez com o escultor Antonio Rossellino, mas não foi em frente. E o bloco de mármore ficou abandonado. Segundo conta Vasari, era uma peça quase imprestável: Duccio havia começado a esculpir um gigante, mas o mármore fora tão mal talhado que havia um buraco entre as pernas, e desastrados golpes de cinzel por toda parte.

Em 1501 o mármore voltou a atrair atenções. Representantes da comissão de obras da catedral, e do novo governo republicano, imaginaram que ele poderia ser transformado em um gigante que simbolizasse sua confiança no futuro. Pensaram logo em Davi, o herói bíblico que, com uma pedra atirada por sua funda, liquidou o gigante Golias, e tornou-se, mais tarde, rei de Israel. Ninguém acreditava, vendo o estrago feito por Agostino di Duccio, que aquela peça bastaria, mas a comissão estava preparada para comprar peças que pudessem ser adicionadas. Passou-se, então, a procurar o artista que faria o trabalho. No início foram cogitados os nomes de Leonardo da Vinci e Andrea Sansovino. Foi, muito provavelmente, o que trouxe Michelangelo de volta a Florença.

Ele examinou atentamente o mármore, e concluiu que, sem adicionar qualquer peça, poderia criar o seu gigante adaptando sua pose às limitações que encontrou. Candidatou-se ao trabalho e, três meses após sua chegada, a 16 de agosto de 1501, aos 26 anos, foi encarregado de executá-lo. Ergueu logo os andaimes e cavaletes necessários, escondendo a pedra de olhares curiosos, e a 9 de setembro, com uns poucos golpes do martelo, derrubou um nódulo que havia na parte em que faria o peito do herói, começando a esculpir.

Ele costumava trabalhar, primeiramente, no desenho da figura. Dizia que a estátua já existia lá, dentro do mármore, e que ele apenas a libertava. Feito o desenho, que riscava sobre a pedra, começava a esculpir, de frente para trás, de alto a baixo. Imagine-se uma estátua submersa horizontalmente na água, e que venha sendo trazida vagarosamente para a superfície, até estar totalmente fora. Assim trabalhava Michelangelo, segundo Vasari. Também segundo ele, para o Davi, Michelangelo fez, antes, um modelo em argila.

O Davi que a estátua retrata é um jovem no esplendor da força e da beleza, relaxado na postura e tenso psicologicamente: já foi dito que, nesta obra, Michelangelo utilizou, pela primeira vez, sua capacidade de transformar o físico em veículo de emoções e idéias. O herói é retratado instantes antes de utilizar sua funda para, com uma pedra, derrubar o gigante Golias. Tem o peso do corpo sustentado pela perna direita, a esquerda ligeiramente dobrada, não está parado nem andando, em uma combinação de inércia e perspectiva de movimento. A atenção, e tensão, estão em sua cabeça, voltada para a esquerda, no cenho franzido, no olhar ansioso.

A cinzelada final foi dada no início de 1504. Quando Michelangelo dava os últimos retoques, recebeu a visita do contratante da obra, seu amigo, o Gonfaloniere Pietro Soderini. Vasari conta que Soderini postou-se ao pé da estátua, para observá-la. Gostou muito, mas fez um comentário:

– Acho que o nariz está grande demais.

Michelangelo não discutiu: pegou o cinzel e subiu nos andaimes. Sem que o outro percebesse, ele apanhou, ao subir, um pouco do pó de mármore, que estava caído nos cavaletes, e, postando-se diante da cabeça do gigante, interpondo-se entre ela e o olhar do Gonfaloniere, fingiu cinzelar o nariz, enquanto deixava o pó ir caindo aos poucos. Instantes depois, afastou-se e pediu:

– Olhe para ele agora.

Soderini abriu um sorriso.

– Agora sim, você lhe deu vida.

Pronto o Davi, formou-se uma comissão para decidir onde seria colocado. Uma comissão de frente, poderia-se dizer: Leonardo da Vinci, Andrea della Robbia, Sandro Botticelli, Fillipino Lippi, Perugino e Giulliano da San Gallo eram parte dela. Entretanto, a decisão final parece ter sido do próprio Michelangelo: Piazza della Signoria, em frente ao Palazzo Vechio. Para transportar a estátua foi necessário mobilizar quarenta homens, que a carregaram sobre catorze roletes, durante quatro dias.

A fama de Michelangelo foi multiplicada depois disso. Recebeu diversas outras encomendas, inclusive outro Davi, em bronze, para o próprio Pietro Soderini, e um tondo (pintura circular) para seu amigo Angelo Doni, o Tondo Sagrada Família, a única pintura que concluiu sem ser em uma parede ou um teto. Terminado o quadro, ele o mandou a Angelo por um mensageiro, que levou também a conta: 70 ducados. Quando este voltou, trazia 40 ducados e um recado:

– O senhor Doni diz que 70 ducados seriam demais.

– Pois então volte, e diga-lhe que agora o preço dobrou: tem que mandar-me mais 100.

O mensageiro voltou com mais 30, completando os 70 pedidos inicialmente.

– Volte e diga-lhe que deve completar 140 ou devolver-me o quadro.

Angelo Doni completou o pagamento.

Michelangelo pintou a Sagrada Família entre 1503 e 1504, e no ano seguinte Leonardo da Vinci começou a sua Monalisa. Os dois usaram recursos materiais parecidos, que foram aperfeiçoados por Leonardo.

Uma das facetas do gênio de Michelangelo pode ser observada considerando-se a maneira como se adaptava à técnica necessária para executar suas encomendas. Ele não gostava de pintar, considerava então a pintura uma arte menor em relação à escultura, porque uma consiste em acrescentar, a outra em subtrair. Dizia mais ou menos o seguinte:

–Se você dá uma pincelada errada, pode consertá-la. Mas se errar quando tira o mármore, o trabalho está perdido.

Por isso ele resistia à pintura. E fez o teto da Sistina, e o Juízo Final.

Um dia, foi-lhe encomendada uma escultura do Papa Júlio II, em bronze.

– Bronze? – perguntou. – E o que sei eu de bronze? Não posso fazer!

Quem encomendava era o próprio Papa.

– Aprenda. Quero em bronze – repetiu Júlio II, e encerrou a conversa.

Michelangelo fez. Na verdade, o bronze não lhe era estranho, uma vez que já havia feito o Davi de Pietro Soderini. Mas não se sentia bem trabalhando com ele, e, além de tudo, não teve muita sorte ao atender o Papa nessa missão. Em carta ao pai, em julho de 1507, ele contaria:

“Deixe-me contar-lhe que fizemos a minha figura, na qual não tive muita sorte, porque, por ignorância, ou acidente, mestre Bernardino não fundiu bem o material (…) Minha figura saiu até a cintura, e o resto do material, quer dizer, metade do metal, permaneceu na fornalha e não foi fundido, e para tirá–lo terei que separar a fornalha, que é o que estou fazendo (…)”

A competição entre ele e Leonardo da Vinci fascinava e divertia os florentinos. Vinte e três anos mais velho, considerado pelo próprio Michelangelo o grande mestre da geração anterior, Leonardo havia pintado “A Última Ceia” para os monges de Santa Maria das Graças, em Milão, e tornara-se o mais famoso pintor italiano vivo. As discussões entre os dois eram freqüentes, e Leonardo parecia gostar de provocar o concorrente. Ele escreveu:

“O escultor, ao criar seu trabalho, o faz pela força do braço, com a qual consome o mármore ou qualquer outro material duro em que seu objetivo está encrustrado. E isso é feito mais por exercício mecânico, sempre acompanhado por grande suor, que se mistura com a poeira do mármore e forma uma espécie de lama que cobre todo seu rosto. A poeira do mármore o cobre todo, e ele parece um padeiro. Suas costas ficam cobertas por uma nevasca de lascas, e sua casa fica imunda com lascas e poeira de pedras. Exatamente o contrário acontece com o pintor, que senta-se diante de seu trabalho, perfeito em seu conforto, e bem vestido, e movimenta um pincel bem leve, mergulhado em cores delicadas, e ele se arruma com as roupas que lhe dão prazer. Sua casa é limpa e cheia de pinturas encantadoras, e frequentemente seu trabalho é acompanhado por música, ou pela leitura de vários e belos trabalhos, que, desde que não estão misturados com o bater do martelo ou outros barulhos, são ouvidos com o maior prazer”.

Como já vimos, a resposta que Michelangelo costumava dar a esses argumentos é que sua arrumadeira sabia bem mais do que Leonardo. Muito mais tarde, já aos 73 anos, ele escreveu uma carta para Benedetto Varchi, um acadêmico florentino que promoveu um simpósio para discutir qual a arte mais nobre, a pintura ou a escultura.

“Em minha opinião, a pintura deveria ser considerada melhor na medida em que se aproximasse do relevo, e o relevo deveria ser considerado pior na medida em que se aproximasse da pintura. E, por isso, eu sempre senti que a escultura era a lanterna da pintura, e que havia entre elas a diferença que existe entre o sol e a lua. Agora, depois de ler um ponto defendido por você em seu livro, o de que, filosoficamente, as coisas que têm um mesmo fim são uma mesma coisa, mudei de opinião e digo que, se grande discernimento, dificuldade, obstáculos e trabalho não produzem grande nobreza, pintura e escultura são coisas idênticas. E, assim concluindo, digo que o pintor não deve fazer menos escultura do que pintura, e os escultores devem fazer tanta pintura quanto escultura. Chamo de escultura aquilo que é feito pela força maior de cortar fora; o que é feito adicionando é similar à pintura. Desde que uma e outra vêm de uma mesma faculdade, esculpir e pintar, acho que as duas podem conviver em paz e deixar essas disputas para trás, pois mais tempo se perde com elas do que produzindo figuras.”

Kenneth Clark, autor de um respeitadíssimo livro sobre Leonardo da Vinci, analisou bem o relacionamento dos dois grandes mestres:

“Vemos que a antipatia, o ‘sdegno grandissimo’ (grande desdém), como Vasari o chama, que existia entre os dois homens, era bem mais profundo que ciúme profissional. Vinha, de fato, de suas profundas crenças. Em nenhum senso aceitável Leonardo pode ser chamado cristão. Ele não tinha mente religiosa. Michelangelo, por outro lado, era um homem profundamente religioso, para o qual a reforma da Igreja Romana veio a ser uma questão de preocupação apaixonada. Sua mente era dominada por idéias – boas e más, de sofrimento, purificação, união com Deus, paz de espírito – que eram, para Leonardo, abstrações sem sentido, e para Michelangelo, a verdade última. Não admira que essas idéias, em um homem com o poder moral, intelectual e artístico de Michelangelo, dessem a Leonardo o sentimento de que apenas uma camada muito fina os separava da confrontação. Embora Leonardo tivesse uma crença, que transparece em seus escritos e era ocasionalmente dita com real grandeza: a crença na experiência.”

Uma vez alguém disse a Michelangelo que ele devia ter muito medo da morte, porque estava sempre ocupado, sempre com pressa, metido em seus trabalhos artísticos.

– Ao contrário – respondeu ele. – Tenho certeza de que me darei tão bem com a morte como com a vida. Afinal, as duas vieram de um mesmo mestre.

Conhecendo a grande antipatia entre os dois grandes gênios, é fácil imaginar a excitação que envolveu Florença quando foram postos em competição direta. Pietro Soderini, o Gonfaloniere, resolveu encomendar dois enormes murais para o Grande Salão do Conselho, no Palazzo Vechio. Aconselhado por amigos e outros artistas, ele contratou Leonardo da Vinci em 1503. Da Vinci deveria pintar o seu mural inspirado na vitória dos florentinos sobre os milaneses na Batalha de Anghiari, em 1440. E, enquanto ele trabalhava no esboço em cartão, em 1504, Soderini contratou Michelangelo para pintar outro mural, na parede ao lado, inspirada em outra batalha, a de Cascina, em que os florentinos bateram os soldados de Pisa, em 1364.

A batalha do Palazzo Vechio, entretanto, acabou sendo um fiasco. Leonardo fez o seu esboço – um desenho em escala real da pintura, que depois é transferido para a parede e recebe as cores – e começou a pintar, chegando a terminar as cenas mais importantes. Mas acabou usando uma mistura diferente, juntando óleo às tintas, e achou necessário colocar braseiros na sala, para secar a pintura. Um desastre: a parte superior do painel escureceu, e a inferior começou a escorrer. Ao mesmo tempo ele foi convocado a Milão, e não voltou a trabalhar na obra.

Michelangelo, trabalhando escondido, como era seu hábito, fez o seu esboço utilizando vários cartões enormes, para várias cenas, que ele juntaria depois e formaria o todo. O esboço provocou uma revolução. Ele criou uma cena em que os soldados florentinos estão se banhando no rio e são surpreendidos pelo inimigo. Uma fantástica oportunidade para que explorasse ao máximo o tema que mais o inspirava: o nu masculino. Os soldados são retratados nas posições mais variados, contorcendo-se, os músculos estirados, as expressões tensas. Mas a pintura não chegou a ser iniciada: o novo Papa, Julio II, chamou Michelangelo a Roma para uma tarefa interminável. Quando vieram a público as diferentes partes do seu esboço, elas foram disputadas quase que aos tapas pelos amigos, que passaram a copiá-las febrilmente, na pintura a na escultura, e o nu masculino monopolizou a produção artística de Florença. Talvez a melhor cópia seja a de Francesco da Sangallo, hoje na coleção do Conde de Leicester, em Holkham Hall, Norfolk, Inglaterra. Infelizmente, o esboço original foi destruído.

Em março de 1505, Michelangelo chegou a Roma convocado pelo Papa Julio II, que pediu-lhe o projeto de um túmulo grandioso, que retomasse o esplendor da antiga Roma. Michelangelo desenhou uma obra ambiciosa, um túmulo que era também fortaleza, guardado por 40 estátuas de mármore. Aprovado o projeto, ele partiu para Carrara, onde passou oito meses escolhendo e supervisionando o corte das peças de mármore que usaria. Levados para Roma, os blocos ocuparam metade da praça de São Pedro. Instalado em um dos quartos do castelo de Sant’Angelo, Michelangelo começou a trabalhar, recebendo visitas constantes do Papa.

E começaram seus problemas. O Papa vivia rodeado de artistas, que lhe apresentavam os mais variados projetos, e, talvez por iniciativa própria, ou aceitando uma sugestão que aprovou, encomendou ao arquiteto Donato Bramante a demolição e reconstrução da basílica de São Pedro. Ele queria um obra magnífica, que abrigaria seu túmulo. O fato é que a basílica passou a ser sua principal preocupação, e Michelangelo foi perdendo espaço, deixando de receber o dinheiro necessário para manter-se e para pagar novos blocos de mármore, que continuavam chegando de Carrara. Não se sabe exatamente onde termina a realidade e começa a paranóia, mas Michelangelo atribuiu os contratempos a intrigas de Bramante e Raphael Sanzio, o grande Raphael de Urbino, junto ao Papa. Em maio de 1506 ele escreveria:

“No sábado santo ouvi o Papa, conversando à mesa com um joalheiro e com o mestre de cerimônias, dizer que ele não pretendia gastar mais uma moeda com esculturas, grandes ou pequenas, o que me deixou espantado. Assim, antes de sair, pedi a ele parte do que precisava para continuar com o trabalho. Sua Santidade respondeu-me que eu deveria voltar na segunda-feira; voltei na segunda, na terça, na quarta e na quinta, como ele bem viu. Finalmente, na sexta-feira pela manhã fui mandado embora, escorraçado, e o sujeito que me despachou disse que sabia quem eu era, mas que estava cumprindo ordens. Assim, tendo eu ouvido aquelas palavras no sábado, e vendo o resultado, fiquei extremamente desesperado. Mas isso não foi o único motivo da minha partida; há também outra coisa, a qual não quero escrever, e que me fez pensar que, se ficasse em Roma, meu túmulo seria construído antes que o do Papa. Este foi o motivo da minha súbita partida.”

– Pois diga ao Papa – disse ele ao homem que o expulsava – que, de hoje em diante, sempre que procurar Michelangelo, verá que ele vai estar em alguma outra parte qualquer.

Ele voltou para casa, reuniu suas coisas, deu ordem a dois ajudantes para que vendessem aos judeus tudo o que deixava ali, e fossem encontrá-lo em Florença. E, às duas da manhã, montou em um cavalo e partiu. Foi alcançado em Poggibonsi, território florentino, por cinco mensageiros do Papa, com ordem escrita para levá-lo de volta. Eles conseguiram dele apenas algumas palavras em um pedaço de papel, pedindo ao Papa perdão por não voltar, e recomendando que procurasse outra pessoa para servi-lo.

Ficou sete meses em Florença, e nesse tempo três despachos do Papa chegaram ao governo da cidade, com ordens para que devolvessem Michelangelo a Roma. Ele pensou em refugiar-se em Constantinopla, onde queriam que construísse uma ponte, mas finalmente Piero Soderini, o Gonfaloniere, convenceu-o a apresentar-se ao Papa, que estava em Bolonha.

– Você afrontou o Papa de uma forma que nem o rei de França ousaria – disse-lhe Soderini. – Nós não queremos ir à guerra com ele por sua causa, e assim arriscar o Estado. Portanto, prepare-se para voltar.

Foi levado a Julio II por um bispo, que deveria protegê-lo da fúria papal. Michelangelo ajoelhou-se.

– Quer dizer que, em vez de vir a Nós, você esperou que Nós viéssemos a você? – perguntou o Papa, referindo-se ao fato de que Bolonha está mais próxima de Florença que de Roma.

– Perdão, Sua Santidade. Estava furioso e cometi um erro. Peço que me perdoe.

   O bispo achou que deveria interceder por ele:

– Perdoe-o, Santidade. Esses homens são por demais ignorantes e completamente sem valor quando fora de sua arte. Perdoe-o.

– Você é que é o ignorante – respondeu o Papa, furioso. – Está lhe dizendo insultos que Nós jamais pronunciaríamos!

O bispo foi expulso. Satisfeita sua ira, Julio II perdoou e abençoou Michelangelo, dando-lhe presentes e mantendo-o em Bolonha até que, dias depois, encomendou-lhe sua estátua em bronze, aquela que, a princípio, ele tentou recusar-se a fazer. Estar em Bolonha, para ele, era um martírio, e suas queixas eram muitas:

– Desde que cheguei só choveu uma vez, e tem estado tão quente como eu nunca imaginei que estaria em qualquer lugar no mundo. O vinho aqui é muito caro, e tão ruim quanto é possível ser, e é tudo assim, o que torna minha existência miserável.

Antes que o Papa deixasse Bolonha, Michelangelo apresentou-lhe um modelo em argila. A mão direita da estátua estava erguida, dando uma bênção, e ele tinha dúvidas sobre o que fazer com a esquerda. Perguntou:

– O que acharia Sua Santidade se eu colocasse um livro em sua mão?

– Livro? – respondeu ele. – Não sou um acadêmico. Coloque uma espada. Mas diga: essa sua estátua está abençoando ou amaldiçoando?

– Está ameaçando o povo, Santo Padre, para que não seja tolo.

Satisfeito, Julio II partiu para Roma. Ele esteve em Bolonha por motivos militares: sufocar uma revolta de bolonheses que se opunham ao seu comando e haviam conquistado a região. Por isso quis a estátua que encomendou a Michelangelo, e que, depois de 16 meses de trabalho, a 15 de fevereiro de 1508, foi colocada no nicho principal da igreja de San Petronio. Ela lembraria para sempre aos bolonheses a autoridade do papa.

Não lembrou por muito tempo. Em dezembro de 1511 os revoltosos voltaram à ação, reconquistaram Bolonha e venderam a estátua ao duque Alfonso de Ferrara, grande inimigo de Julio II. O duque fez com que a derretessem, usou o bronze para construir um canhão, e o batizou de La Giulia, em homenagem ao Papa.

Terminada a estátua em fevereiro, em março Michelangelo voltou a Florença, pretendendo ficar definitivamente, e comprou uma casa na Via Ghibelina, perto da Santa Croce. No século seguinte ela seria reconstruída como Casa Buonarroti, um memorial.

Não conseguiu ficar muito tempo em sua cidade: o Papa o convocou novamente. Contrariado, seguiu para Roma imaginando ter que retomar a construção do túmulo, mas uma surpresa o esperava.

Já foi dito que Michelangelo tinha uma razoável dose de paranóia, e isso pode ter influenciado os relatos sobre esse período, feitos principalmente por Giorgio Vasari e Ascanio Condivi, biógrafos que o ouviram diretamente. Eles contam que, enquanto Michelangelo estava em Bolonha, terminando a estátua de bronze, Bramante e Raphael Sanzio o intrigaram junto ao Papa, embora o mais provável seja que, naquela época, Raphael ainda não houvesse chegado a Roma. Bramante e Raphael, segundo Vasari, tinham ciúmes de Michelangelo, porque consideravam que ele havia atingido a perfeição em termos de escultura, e quiseram evitar que continuasse esculpindo. Então fizeram ver ao Papa que não deveria continuar a construção do túmulo, porque isso poderia apressar sua morte, ‘uma vez que todos sabem que dá má sorte construir um túmulo para uma pessoa que ainda está viva’. O Papa, teriam dito os dois, deveria homenagear a memória de seu tio, Sixtus, contratando Michelangelo para pintar o teto da capela que ele fizera construir no Vaticano, a Sistina.

Assim, conta o biógrafo, “pretendiam levar Michelangelo ao desespero, achando que, ao pintar, ele produziria um trabalho de menor qualidade, e teria menos sucesso do que Raphael, pois não sabia fazer afrescos coloridos. E, mesmo que conseguisse um bom trabalho, ficaria furioso com o Papa, de maneira que, de um modo ou de outro, sua intenção de livrar-se de Michelangelo seria bem sucedida.”

E a surpresa foi esta: o Papa queria que pintasse o teto da Sistina. Ele recusou, disse que seu trabalho era esculpir, alegou pouca intimidade com as cores e recomendou Raphael. O Papa insistiu, ordenou, e não houve outro jeito. Quando concordou, Bramante recebeu a tarefa de montar os andaimes na capela. Ele perfurou o teto em vários pontos, encaixou ganchos e pendurou cordas.

– Mas o que é que vou fazer com esses buracos quando terminar a pintura? – perguntou Michelangelo.

– Isso é algo com que nos preocuparemos mais tarde – respondeu Bramante.

“Ora vejam”, pensou Michelangelo, que mais tarde contou o episódio a Vasari, “ele não entende nada disso, ou então não é lá muito meu amigo”. E queixou–se ao Papa.

– Pois monte os andaimes à sua própria maneira – respondeu ele.

Michelangelo chamou um velho carpinteiro, deu suas instruções e pagou adiantado. Pagou com cordas, porque Bramante havia comprado tanta corda que a maior parte dela sobrou. Vendendo o que recebeu, o carpinteiro deu o dinheiro como dote à filha, que tinha casamento marcado. (Bramante, diz o inglês Nathaniel Harris, autor de The Art of Michelangelo, enganava o Papa, comprando material demais, e de baixa qualidade. Ele tornou-se assim precursor de uma prática muito difundida mais tarde: o superfaturamento. Ainda segundo Harris, ele tinha medo de que Michelangelo o denunciasse ao Papa por isso).

Prontos os esboços em cartão, preocupado com seu pequeno conhecimento da técnica de afrescos e experiência com cores, ele importou de Florença cinco pintores para ajudá-lo com o teto, entre eles Francesco Granacci, o amigo e colega que o havia apresentado a Ghirlandaio. Instalados os cinco em Roma, e tendo passado dos cartões para o teto os primeiros esboços, Michelangelo pediu que começassem a pintar.

Fracasso completo. Ao ver os primeiros resultados, ele torceu o nariz, esperou mais um pouco e, certa manhã, perdendo a paciência, apagou tudo o que haviam pintado. Trancou-se na capela e não os deixou mais entrar, apesar das insistentes pancadas que davam na porta, achando que Michelangelo brincava com eles. Ele não os recebeu nem mesmo em casa, e os cinco, indignados, retiraram-se para Florença. Não iam exatamente cobertos de glória.

Foram quatro anos turbulentos. Começou a pintar em 1508, e o trabalho final foi apresentado a uma seleta platéia no dia 31 de outubro de 1512. Michelangelo tinha 37 anos. Aconteceram imprevistos no percurso, um deles provocado por manchas na pintura, obra do clima romano. Ele chegou a desculpar-se com o Papa e a desistir do trabalho, mas Giuliano da San Gallo foi convocado para explicar-lhe como evitar o problema. Julio II pressionava-o continuamente, pedindo para ver a pintura (o que ele não queria) e apressando-o. Havia um diálogo entre os dois que ficou célebre.

– Quando vai terminar? – perguntava o Papa.

– Quando tiver terminado – respondia ele.

Em uma das vezes – contrariado porque Michelangelo dificultava suas visitas à capela, e com raiva pela demora – ao receber a mesma resposta foi tomado pela fúria. Tinha um cajado nas mãos, e lascou-lhe uma cajadada nas costas.

Em outra ocasião, vendo a pintura, pediu:

– Decore a capela com mais cores, e com ouro, pois ela parece muito simples.

– Santo Padre – respondeu ele. – Naqueles dias os homens não usavam ouro, e aqueles que estão pintados aqui nunca foram ricos, pois eram homens santos que desprezavam a riqueza.

Ao contrário do que muitos acreditam, e foi mostrado no cinema, Michelangelo não pintava deitado nos andaimes, mas em pé. Ele mesmo fez um esboço em que aparece pintando, a cabeça totalmente inclinada para trás, em posição que provocava muita dor. Vasari conta que, quando terminou, passou meses sem que conseguisse ler nada, nem mesmo as cartas que recebia, sem inclinar a cabeça e ler o texto, que levantava sobre ela.

A conclusão da pintura foi precipitada por novo diálogo.

– Quando vai terminar?

– Quando eu estiver satisfeito com os detalhes artísticos.

– E Nós – respondeu Julio II – queremos que você Nos satisfaça em Nosso desejo de ver isso pronto rapidamente.

E arrematou:

– Termine. Ou farei com que o atirem do alto desses andaimes.

Michelangelo terminou rapidamente.

Há diferentes versões sobre o quanto recebeu pelo teto. A mais comum, que Vasari registra, é a de que o Papa pagou-lhe três mil ducados. Segundo a obra Michelangelo: The Sistine Chapel Ceiling, da coleção Norton Critical Studies in Art History, editado por Charles Seymour, Jr. em 1972, um ducado seria equivalente a 50 dólares no ano de 1970. A LAFIS Consultoria, em São Paulo, considerando a inflação do dólar nos EUA no período 1970-1997, estima que, hoje, um ducado valeria 208 dólares, o que significa que os três mil ducados teriam um valor aproximado de 624.000 dólares.

Depois da pincelada final no teto da Sistina Michelangelo foi imediatamente alçado à posição de melhor pintor vivo em todo o mundo. Hoje, o pintor vivo que tem as obras mais caras do mundo é o norte-americano Jasper Johns. Seus quadros valem 10 milhões de dólares.

sistinaEm 1533, ou seja, 21 anos depois, Michelangelo seria convocado para trabalhar novamente na Sistina, desta vez para pintar O Juízo Final. Nesse meio tempo fez obras importantes, como o Moisés e os escravos, que pretendia colocar no túmulo de Julio II (o Moisés está hoje na igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma, e os escravos estão no Louvre, em Paris). Fez também a capela dos Medici, em Florença, e quando trabalhava nela foi chamado a Roma pelo papa Clemente, que encomendou-lhe a nova pintura na Sistina. Michelangelo não queria isso, estava torturado por não conseguir terminar o túmulo de Julio, e chegou a pensar que se livraria dessa tarefa quando Clemente morreu, logo depois.

Pura ilusão. O novo papa, Paulo III, renovou a convite. E quando, novamente, Michelangelo tentou recusar, alegando que tinha um contrato que o obrigava a concluir o túmulo, ele foi enfático:

– Por trinta anos desejei tê-lo a meu serviço. Agora que sou Papa, não vou ter esse desejo satisfeito? Vou rasgar esse contrato, e, de qualquer maneira, pretendo vê-lo servindo a mim.

Sem outra saída, Michelangelo dedicou-se ao trabalho. Criou seu painel com tamanha força, com tanto impacto, que, dizem, o Papa, vendo-o pronto, atirou-se ao solo gritando: “Deus, perdoe os meus pecados quando o Juízo chegar”.

Uma obra que se tornou polêmica ainda incompleta. Quando mais da metade dela estava pronta, Paulo III foi vê-la acompanhado de Biagio da Cesena, seu mestre de cerimônias. O Papa perguntou a ele o que achava.

– É fora de propósito que, em tão venerando lugar, estejam pintados tantos nus, indecentemente expondo suas vergonhas. Isso não é um trabalho para a capela do Papa, e sim para uma casa de banhos, ou uma taverna.

Assim que os dois se foram, Michelangelo pegou os pincéis e pintou Biagio de Cesena no Inferno, no papel de Minos, o corpo envolto por uma serpente. De nada adiantaram os protestos de Biagio ao Papa e ao próprio Michelangelo: ele queima no Inferno até hoje. A polêmica continuou no papado de Paulo IV (ele chegou a considerar a destruição da pintura), que mandou um mensageiro protestar junto ao autor.

– Diga a Sua Santidade que isso é um problema pequeno, que pode ser resolvido facilmente – respondeu ele. – Que ele se preocupe em dar ordem ao mundo; retocar uma pintura não representa dificuldade maior.

Daniele da Volterra, um dos assistentes de Michelangelo, foi encarregado de cobrir as partes mais ‘delicadas’, e acabou pagando um preço alto por isso: passou para a história como Daniele, il Braghettone (Daniele, o fazedor de calções).

adaoMichelangelo tinha 66 anos quando terminou o Juízo Final, em 1541, oito anos depois de tê-lo iniciado. Em 1546 começou a trabalhar na basílica de São Pedro, o que fez por 17 anos, até a morte. Sua produção havia diminuído após completar os 60. Pouco antes disso, teve algumas ligações sentimentais com homens bem mais jovens, sendo o principal deles, ao qual dedicou muitos poemas, um nobre romano chamado Tommaso de Cavalieri. “Ligações sentimentais”, enfatizou o autor Nathaniel Harris, acrescentando: “não há porquê especular a respeito da vida sexual de Michelangelo, já que não existem informações confiáveis a respeito”.

Em carta de junho de 1557, ao sobrinho Lionardo, Michelangelo dizia:

“Estou doente do corpo, com todas as doenças que os velhos têm: com a pedra, de maneira que não posso urinar; nos lados e nas costas, com tanta intensidade que frequentemente não consigo subir os degraus; e o pior é que estou cheio de dores… Rezo a Deus para que me ajude e aconselhe, e se eu ficar realmente mal, isto é, com febre perigosa, mandarei que chamem você com urgência. Mas não pense nisso nem em vir para cá se não receber carta minha pedindo-lhe para vir”.

Em dezembro, ele voltaria a escrever:

“Escrevi para você sobre uma casa, porque, se eu ficar livre aqui antes de morrer, gostaria de saber que tenho um ninho aí só para mim e meu bando, e para fazer isso estou pensando em transformar em dinheiro tudo o que tenho aqui”.

Quatro anos mais tarde, em outra carta, ele agradecia ao irmão uma remessa de queijos e desculpava-se por não haver escrito antes, porque “estando velho como estou, escrever é muito aborrecido”. A última que escreveu estava datada de 28 de dezembro de 1563. Tinha 88 anos:

“Estou encantado com o seu bem-estar, e o mesmo é verdadeiro para mim. Recebendo várias cartas suas recentemente, e não as tendo respondido, eu me omiti, porque não posso usar minha mão para escrever. Portanto, daqui por diante pedirei a outros que escrevam, e eu assinarei.”

Apesar de tudo, Michelangelo continuava em ação, na basílica de São Pedro e em sua casa. Ele havia iniciado nova escultura, por volta de l547, pretendendo que fosse colocada em seu próprio túmulo: a Descida da Cruz. Cristo morto é apoiado por sua mãe, por Maria Madalena e por Nicodemus, uma figura encapuzada à qual deu seu próprio rosto, num auto-retrato. Entretanto, não se sabe porque, irritou-se com a obra e atacou-a a golpes de cinzel, pretendendo destruí-la. Depois permitiu que um de seus discípulos a reconstituísse, e ficou flagrante a diferença entre Cristo, Maria e Nicodemus, bem ao seu estilo, e Maria Madalena, trabalhada pelo outro.

Em sua última semana de vida ele ainda esculpia. A Pietá Rondanini, hoje no Museu do Castelo Sforzesco, em Milão, é um conjunto de duas figuras longas – Maria segurando o filho morto – em um trabalho apenas no seu início, mas que, no dizer de alguns críticos, dificilmente causaria maior impacto se Michelangelo o houvesse terminado.

Giorgio Vasari assim descreveu sua morte:

“Lionardo, o sobrinho de Michelangelo, queria ir para Roma na Quaresma seguinte, porque achava que seu tio havia chegado ao fim da vida; e Michelangelo ficou muito satisfeito com essa sugestão. Quando, porém, ele caiu doente com uma febre fraca, imediatamente fez Daniele (da Volterra) escrever dizendo a Lionardo que ele deveria vir. Mas, apesar da atenção de seu médico, mestre Federico Donati, e de outros médicos, sua doença piorou; então, em perfeita consciência, ele fez seu testamento em três sentenças, deixando sua alma nas mãos de Deus, seu corpo para a terra, e suas possessões materiais para seus parentes mais próximos. Ele disse aos seus amigos que, enquanto morria, deveriam relembrá-lo do sofrimento de Jesus Cristo. E no dia 17 de fevereiro do ano de 1563, na vigésima-terceira hora, segundo o calendário florentino, ou em 1564, de acordo com o romano, ele expirou e foi para uma vida melhor.”

Na verdade, a data correta da morte é 18 de fevereiro de 1564, em Roma. Teve um funeral ao qual compareceram todos os seus amigos de Roma e Florença, e foi enterrado na igreja dos Santos Apóstolos, com o Papa pretendendo erguer para ele um memorial e um túmulo na própria basílica de São Pedro. Lionardo, o sobrinho, chegou a Roma depois do enterro, com uma missão a ele confiada pelo duque de Cosimo, grande amigo do tio: levar para Florença o corpo de Michelangelo, para que fosse honrado com toda a pompa que merecia.

Lionardo, secretamente, roubou o corpo, embalou-o como um fardo de mercadoria, e partiu com ele de madrugada, para evitar o tumulto que os romanos certamente fariam se soubessem o que estava fazendo. Os amigos tentaram evitar tumulto também em Florença, planejando uma cerimônia discreta na igreja de Santa Croce. Ilusão: a notícia da morte de Michelangelo, e da presença de seu corpo na cidade, correu de boca em boca, e Vasari, que estava presente, conta que, ‘num piscar de olhos’, a igreja foi tomada pela multidão.

Vinte e dois dias haviam se passado, a maior parte deles com o corpo de Michelangelo fechado no caixão, mas assim mesmo os amigos resolveram vê–lo. E, para espanto geral, nem mesmo um leve odor foi sentido: o corpo estava intacto, perfeito, como se tivesse morrido há alguns instantes apenas.

   Um dia um padre, amigo de Michelangelo, disse-lhe:

– Uma pena que você não tenha tido uma esposa. Pois você teria muitos filhos, e deixaria para eles muitos honoráveis trabalhos.

– Eu tenho muito de uma esposa nesta arte que sempre me afligiu – respondeu ele. – E os trabalhos que deixarei serão meus filhos, e mesmo que eles não sejam nada, viverão uma longa vida.

A historinha por trás do texto, segundo o próprio  autor

Eu mesmo desenhei e editei as páginas em que o texto acima foi publicado. Nas duas primeiras páginas, que ficavam lado a lado, coloquei no alto, ocupando todo o espaço das duas e ali ele só caberia deitado o Davi, em reprodução fotográfica. Mais tarde, estando com o Dr. Ruy Mesquita, diretor do Estadão, ele me advertiu: “Você não precisava ter colocado isso tão grande” – o doutor Ruy não gosta de nus em seus jornais. “Mas é um Michelangelo, doutor Ruy” – respondi. E ele: “Ora”

4 Comentários para “Michelangelo”

  1. Só hoje consegui ler. Um brilho. Além da pesquisa, de fundo e peso, o texto flui, dá vontande de continuar lendo. Bom que seja assim; afinal, o conhecimento das novas gerações sobre Da Vinci não pode se limitar aos misticismos (até instigantes) de Dan Brown.

  2. essas imagens sao lindas de mais parabens para todos de verdade eu amei tamto tanto

  3. Esta copia de Sangallo (Study for a male figure) que estava na coleção do conde de Leicester, foi comprada em uma entidade do cancer(Southampton)Uk em 2002.

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