Morreu Lenine

zzzzmanuel1Os mor­tos estão a ver tudo. Essa ciên­cia dos mor­tos, do que eles obser­vam e gos­tam, aprende-se no cinema. Os mais cép­ti­cos deixam-se levar pelas pro­sai­cas lições da vida e não acre­di­tam em nada. Enganam-se. O morto que me con­ven­ceu foi Wil­liam Hol­den. Está morto e flu­tua na pis­cina de Sun­set Bou­le­vard.

Virando-se para uma sala escura, virou-se tam­bém para mim e disse: “Tem piada como as pes­soas se des­fa­zem em gen­ti­le­zas con­nosco, depois de estar­mos mor­tos.” Já podem ver que eles ouvem tudo.

Tenho uma catrefa de mor­tos ciné­fi­los. Penso nos mais gen­tis, no Bénard e Luís de Pina, direc­to­res da Cine­ma­teca, no Cin­tra Fer­reira, que tanto escre­veu neste Expresso. Ima­gino que tenham no céu encon­tros ciné­fi­los. Já devem ter falado com o Lenine.

Desiludam-se as aper­ra­das filei­ras do Hotel Vitó­ria. Não é do bol­che­vi­que que falo. O meu Lenine ia à Cine­ma­teca todos os dias, a todas as horas, com uma peri­go­sís­sima alca­teia faminta de fil­mes, que tanto fazia fila para o Hit­ch­cock, como para um secante filme búl­garo. Este Lenine era maci­lento e de cabelo negrís­simo: seria um morto-vivo? Numa noite escura, pre­ga­ria a quem o visse o susto de uma vida. Lia o que escre­vía­mos e, impla­cá­vel, ano­tava erros, gra­lhas, datas, nomes. Entregava-nos as cor­rec­ções com um seco “tomem” e um olhar severo. Valía­mos o quê aos seus olhos? Uma vez, um Bór­gia que diri­gia a PT pagou um mece­ná­tico res­tauro do Ven­da­val Mara­vi­lhoso, filme de Amá­lia. Fez-se um car­taz espam­pa­nante. Lenine chamou-nos e apon­tou o cla­mo­roso erro. Onde se devia ler “um filme de Lei­tão de Bar­ros”, lia-se “um filme de Lei­tão Ramos”. Trocara-se o nome do rea­li­za­dor pelo de um crí­tico. Com um pingo de des­prezo, Lenine disse: “Vocês, nem isto.” E foi-se.

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Pau­pér­rimo, só tinha um saco de papéis, três esfe­ro­grá­fi­cas de cores dife­ren­tes. O Bénard deu ordem para ele entrar sem pagar. Um dia, Lenine não veio. A Antó­nia – decla­ra­ção de con­flito de inte­res­ses: é a minha mulher – soube que ele tinha mor­rido. Cor­reu a avi­sar o Bénard: “João, mor­reu o Lenine.” No seu estilo do outro mundo, tão fan­tasma, o João respondeu-lhe: “Oh, Antó­nia, já mor­reu há mui­tos anos, gra­ças a Deus.” A comu­nista que a Antó­nia é não se irri­tou: “Não é o meu Lenine, João, é o nosso Lenine.

Em home­na­gem, exibiram-lhe A Arca Russa, do Soku­rov, filme que este benigno Lenine vira em vida 20 vezes. Só não sei bem é se foi em vida.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

Sunset Boulevard no Brasil é Crepúsculo dos Deuses.

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