Um escritor fascinante, um amontoado de paradoxos

John Grisham é um escritor fascinante, um amontoado de paradoxos. Seus livros vendem feito água. Têm boas intenções, botam o dedo nas feridas, expõem mazelas da sociedade americana e defendem valores bons, corretos.

Mas muito provavelmente nenhum crítico sério ou sumidade acadêmica dirá que têm grande qualidade literária.

Porém suas obras são extremamente agradáveis de se ler.

Todavia, uma delas, talvez a mais importante de todas, O Inocente, ao contrário dos outros, não é nada fácil; pesado, duro, denso, tem personagens demais, datas demais – contudo, é um brilho: obra de não-ficção, reconstitui com detalhes uma história real repleta de erros do Judiciário, da polícia, das várias instituições do Estado; é provavelmente um dos mais bem documentados trabalhos contra a pena de morte jamais feitos.

Mas, porém, todavia, contudo. Falar de Grisham é usar adversativas.  

Entre 1989 e 2010, ele publicou 25 livros. Média de mais de um por ano, portanto. (Aqui, uma tabela com os títulos e uma breve sinopse.) A imensa maioria deles, senão todos, leva na capa da edição de bolso americana a mesma o selo de garantia: “# 1 New York Times Bestseller”. Chegam ao topo da lista dos mais vendidos do Times já na edição capa dura – e, na edição de bolso, naturalmente, multiplicam-se muito mais as vendas.

Até 2008, seus livros haviam vendido um total de 250 milhões de exemplares no mundo inteiro, em 29 línguas. Nove filmes foram feitos com base em obras dele, em geral por diretores importantes, com atores de primeira.

O cara tem a força, tem o dom – ou, no mínimo, no mínimo, tem a fórmula.

Não é pouca coisa.

          Advertência: John Grisham vicia

Sou leitor de Grisham desde sempre; a rigor, pelo que vejo em velhas anotações, precisamente desde 1994, quando li, de uma enfiada, numas férias no Guarujá das quais nem me lembrava mais, O Dossiê Pelicano e O Cliente. Agora há pouco li, também de uma enfiada, A Intimação e O Inocente. Mais um de seus típicos romances sobre o mundo da Justiça, dos advogados, dos processos, e o livro que é diferente de todos os outros, seu primeiro e único de não-ficção. E aí deu vontade de fazer uma anotação sobre esse autor intrigante, paradoxal, ao mesmo tempo menor e maior. Adversativo.

          28 editoras recusaram o primeiro livro de Grisham

Um dos casos mais saborosos da história dos Beatles é o do executivo da gravadora Decca. Lá por 1961, ou já em 1962 (preguiça de ir aos alfarrábios consultar os dados exatos), Brian Epstein levou os garotos para uma apresentação para o executivo da Decca encarregado de artists & repertoire – me lembro que o termo era este. O camarada encarregado de ouvir grupos novos e selecionar em quem a gravadora deveria ficar de olho, ou que seria bom contratar de cara. Tarefa duríssima, sei disso – separar o joio do trigo, procurar uma pequena pepita de ouro no meio de toda a areia do Saara, ouvir trocentos neguinhos horrorosos para talvez quem sabe achar um que leva jeito. Tarefa duríssima, claro, claro – mas o cara da Decca devia ser muito bem pago para isso, certo? Era o trabalho dele, a tarefa dele, a especialidade dele.

O cara da Decca ouviu John Lennon, Paul McCartney e George Harrison e os dispensou.

Não deve ter dormido bem depois que o compacto simples com “Love Me Do” saiu pela Parlophone, então um pequeno selo da EMI, no dia 1º de dezembro de 1962, e chegou ao 17º lugar da parada inglesa. E não sei se a história registra se o camarada continuava empregado depois de 10 de abril de 1963, quando o compacto de “From Me To You” chegou ao número 1, sendo seguido por mais quatro compactos que bateram no topo até 18 de julho de 1964. A essa altura, a beatlemania já havia tomado conta do mundo.

Lembrei do pobre coitado da Decca quando soube que 28 editoras recusaram o manuscrito de A Time to Kill, que o jovem John Grisham levou três anos para escrever, no final dos anos 80. Uma editora pequena, Wynwood Press, finalmente topou editar o primeiro livro do autor desconhecido, em uma tiragem de 5 mil cópias, em 1989.

Vinte e oito editoras. Entre o pessoal de 28 editoras, deve ter muita gente que não conseguiu dormir quando o segundo romance do autor recusado, A Firma, se tornou o livro mais vendido de 1991 nos Estados Unidos, 47 semanas na lista dos best sellers do New York Times; no total, A Firma vendeu 7 milhões de exemplares nos EUA.

Não dá para dizer que foi igual, mas o fato é que nos anos 90 houve uma grishamania.

          A cada ano, um novo livro, um novo sucesso – e depois um filme

Passaram-se apenas dois anos entre o lançamento de A Firma e a estréia do filme, uma bela produção de 1993, dirigida por Sydney Pollack, com o então ídolo número 1 do cinema americano Tom Cruise no papel do jovem advogado que acha ter ganho a sorte grande quando é convidado para trabalhar numa gigantesca empresa que lhe dá diversas regalias e um salário altíssimo – até perceber que a firma esconde segredos sinistros e exige dele sua alma. O filme rendeu US$ 158 milhões nas bilheterias americanas, US$ 270 milhões no mundo todo. Sucessão.

Todos os cinco livros seguintes viraram filmes. Se A Firma tinha tido o ator número 1 da época, O Dossiê Pelicano, o livro de 1992, teve nas telas a atriz número 1, Julia Roberts, no papel da protagonista, uma jovem estudante de Direito do Sul Profundo que descobre uma gigantesca conspiração que levou à morte de dois juízes da Suprema Corte, e passa a ser perseguida por bandidos perigosos. O filme, de 1993, foi dirigido por Alan J. Pakula e tinha ainda no elenco Denzel Washington como o jornalista que tenta ajudar a mocinha e Sam Shepard como o professor e namorado dela. Me lembro de ter lido em algum lugar que, ao criar o personagem da jovem estudante Darbie Shaw, Grisham já pensava em Julia Roberts, nas longas pernas de Julia Roberts, que tinham feito o mundo inteiro babar com Uma Linda Mulher/Pretty Woman, de 1990.

O Cliente, o livro de 1993, a história de um garoto quase miserável do Sul Profundo que testemunha um crime ligado à Máfia e passa a ser perseguido tanto por mafiosos quanto pelo FBI, virou filme no ano seguinte, dirigido por Joel Schumacher, com Susan Sarandon, Tommy Lee Jones e Mary Louise Parker, grandes atores, no elenco. Brad Renfro fez o garoto.

O livro de 1994, A Câmara de Gás/The Chamber, voltou ao tema central do primeiro, Tempo de Matar – o racismo. Um homem de meia idade, supremacista filho da mãe, está no corredor da morte, condenado por um assassinato motivado por racismo, cometido ainda nos anos 60, época dura da luta pelos direitos civis. Um neto dele, jovem advogado agora trabalhando no Norte, longe daquilo tudo, é chamado para ajudar o avô na sua luta para adiar a execução. Virou um belo filme, dirigido por James Foley, em 1996, com Chris O’Donnell no papel do jovem advogado e Gene Hackman (que havia feito o papel de um patrões em A Firma) no do condenado, mais Faye Dunaway como a filha do velho, mãe do rapaz. No Brasil, o filme teve o título de O Segredo.

          Uma das várias versões da luta de Davi contra Golias

The Rainmaker, O Homem que Fazia Chover, de 1995, é uma das várias versões da luta de Davi contra Golias que Grisham escreveria. O pequenino Davi é representado por uma família pobre do Sul Profundo, cujo filho sofre de leucemia – e é também por um jovem estudante de Direito prestes a se formar, pobre, cheio de dívidas e problemas, que a família procura para defender seus direitos. O gigante Golias é a grande firma de seguros para a qual a família pagava suada prestação mensal – e é também o poderoso escritório de advocacia que vai representá-la na Justiça.

A versão cinematográfica, de 1997, foi dirigida pelo genial Francis Ford Coppola, que, com aparente modéstia, resolveu chamar a obra de John Grisham’s The Rainmaker, assim como chamaria seu Drácula, mais ou menos da mesma época, de Bram Stoker’s Dracula. Aparente modéstia, ou vontade de tirar o seu da reta – como se ele estivesse dizendo “estou filmando obra dos outros, não é obra minha”. Foi, é claro – afinal, é Coppola –, um bom filme, com Matt Damon no papel central.

O livro de 1996 foi O Júri, no original The Runaway Jury. O tema era o cigarro, os males do cigarro, o lobby e o poder das grandes empresas de tabaco. Está sendo julgado um caso de uma família que perdeu uma pessoa, fumante – morta de câncer – e pede indenização. Eventual derrota da indústria de tabaco poderia abrir um precedente que daria prejuízos bilionários. Um jovem consegue ser escolhido como um dos jurados, e fará de tudo para que a defesa da família ganhe a causa.

Minha cunhada Mílcia parou de fumar assim que leu o livro. Não tive essa sorte – ou coragem, ou os dois.

Demorou anos para ser produzido o filme, mas valeu a espera. Feito em 2003 por Gary Fleder, o filme tem um elenco maravilhoso – John Cusak, Rachel Weisz, Gene Hackman como o vilão, empregado pelas grandes empresas, e Dustin Hoffman como o advogado de defesa da família. Ver Gene Hackman e Dustin Hoffman, dois atores excepcionais, da mesma geração, num filme só é um especial prazer.

          Um estilo seco e direto – ou, para quem não gosta dele, falta de estilo

Depois disso, estranhamente, o cinema deu uma parada no que até então era automático. Os livros lançados a partir de 1997 – ano de O Sócio, The Partner – continuaram chegando infalivelmente ao número 1 na lista dos mais vendidos do Times, mas Hollywood parou de transformá-los em filmes.

Não sei o que houve – se os grandes estúdios entenderam que a fórmula estava gasta, se o autor passou a pedir muito pela cessão dos direitos. Mas o fato de não haver novos filmes não mexeu em nada na produção de Grisham e na reação dos leitores. A cada ano, novo livro, novo sucesso, novo primeiro lugar na lista do Times.

A narrativa de Grisham tem um estilo seco e direto. Na verdade, não tem estilo, diriam os que não gostam dele – tendo ou não lido alguma coisa que ele escreveu. Não há floreio algum no texto dele. Não há frases muito longas – muito ao contrário. Não há parágrafos muito longos. Não há longas descrições de paisagens, ou de sensações dos personagens. Não há oscilações no tempo – permanentes referências ao que havia acontecido há cinco anos, em seguida a fatos de três anos antes, em seguida a fatos que estavam para acontecer no futuro: em geral, a narrativa segue a estreita ordem cronológica. Não há frases elaboradas, trabalhadas, esculpidas. Não há ourivesaria. Ele cria tramas interessantes, ricas, que despertam a curiosidade do leitor, narra fatos de maneira objetiva, e entremeia com diálogos ágeis, simples.

Em suma: um texto muito mais para Agatha Christie do que, por exemplo, para seu conterrâneo e contemporâneo Scott Turow, ele também autor de thrillers envolvendo o mundo jurídico, advogados, juízes, promotores, mas com uma densidade literária muitíssimo maior.

          Duas aberturas de livros, para dar um exemplo do estilo

Comparem-se estes dois inícios de livros, isto que no jornalismo chamamos de lead, o parágrafo inicial, aquele que determina de cara para o leitor o tema e o estilo do que virá, no caso de um romance nas centenas de páginas a seguir:

Um:

“Foram casados por 31 anos, e na primavera seguinte, cheio de decisão e com alguma esperança, ele tornaria a casar-se. Naquele dia, porém, num resto de tarde no final de março, o sr. Alejandro Stern voltava para casa. Com a maleta e a mala de viagem ainda nas mãos, da entrada, meio distraído, chamou Claire, sua mulher. Tinha 54 anos, era atarracado e calvo, nunca fora propriamente bonito, e via-se num clima de intensa preocupação.”

Dois:

“Chegou pelo correio comum, o modo antiquado, já que o Juiz tinha quase 80 anos e não confiava nas coisas modernas. Esqueça e-mail e até fax. Ele não tinha secretária eletrônica e jamais gostou de telefone. Escrevia com os dois dedos indicadores, batendo de leve em uma tecla de cada vez, inclinado sobre sua Underwood manual, na escrivaninha de tampa corrediça debaixo do retrato de Nathan Bedford Forrest. O avô do Juiz lutara com Forrest em Shiloh e por todo o interior do sul, e para ele nenhuma figura da história era mais reverenciada.”

Hummm… Botando assim, juntos, os dois leads, fico meio em dúvida se dá para se perceber tão facilmente as diferenças. O segundo lead também volta atrás no tempo. Mas o primeiro começa com uma frase que ao mesmo tempo faz um flashback e um flashforward – “foram casados” x “tornaria a casar-se” –, e traz a marca do sujeito que fica burilando cada expressão. “Cheio de decisão e com alguma esperança” é uma pequena pérola.

A língua original expressa mais claramente essa preocupação com a forma, com a escolha de cada palavra. A ver:

“They had been married for thirty-one years, and the following spring, full of resolve and a measure of hope, he would marry again.”

“It came by mail, regular postage, the old-fashioned way since the Judge was almost eighty and distrusted modern devices.”

Um relata fatos, pão-pão, queijo-queijo, com palavras simples, usuais. Outro entremeia fatos com sensações, descrições – e até usa um termo, resolve, e uma expressão, a measure of hope (em vez de, por exemplo, some hope), que não são de uso tão comum.

Bem, absolutamente claros ou não, acho que são bons exemplos. O lead número 1 é de O Ônus da Prova/The Burden of Proof, copyright 1990, segundo romance de Scott Turow, nascido em Chicago, Illinois, em 1949, formado em Direito pela Universidade de Harvard. O lead número 2 é de A Intimação/The Summons, copyright 2002, 13º romance de John Grisham, nascido em Jonesboro, Arkansas, em 1955, criado em Southhaven, Mississipi, formado em Direito pela Universidade Estadual do Mississipi.

Daria para escrever uma tese (e certamente já deve haver algumas dezenas delas, nas faculdades de letras americanas) só sobre as diferenças entre esses dois advogados da mesma geração que viraram romancistas escrevendo sobre basicamente os mesmos temas. A diferença entre a metrópole situada no Norte industrializado e as pequenas cidades do Sul Profundo. A diferença entre uma das universidades mais antigas, prestigiadas, respeitadas dos Estados Unidos, na excelsa Nova Inglaterra, e uma universidade estadual sulista.

Mas não é o caso, de forma alguma, de nos alongarmos nas diferenças entre Grisham e Turow. Nem falar bem de um ou falar mal de outro. Não é o caso. Quis apenas realçar como é o estilo de Grisham – seco, direto. Pão-pão, queijo-queijo. Econômico, pragmático.

De resto, se fosse para continuar fazendo um paralelo entre Grisham e Turow, bastaria dizer que, pelo que eles dizem em seus romances, suas escalas de valores morais, seus princípios são bastante parecidos.

          Um profundo nojo por alguns dos valores mais caros à sociedade americana

Os livros de John Grisham expressam um profundo desprezo, ódio, asco, nojo, por alguns dos valores mais caros à sociedade americana (e da sociedade capitalista como um todo), como a ambição desenfreada, a prioridade acima de tudo à acumulação de bens materiais, o apego às aparências, aos símbolos de riqueza, à ostentação.

Não, não – absolutamente nada a ver com algum flerte com ideais socialistas. Nada disso.

É uma coisa humanista. Cristã.

Nada católico, também, não – nada daquela idéia de que “é mais fácil passar um camelo por um buraco da agulha do que um rico penetrar no reino dos céus”. Nada de defesa de um viver espartano, franciscano. Nada de condenação do lucro.

Grisham é protestante. Wasp – white, anglo-saxon, protestant. Batista, para ser bem específico. E, obviamente, como não poderia deixar de ser, democrata. Durante os dez anos em que advogou, candidatou-se pelo Partido Democrata ao Legislativo do Mississipi (assim como seu personagem de A Intimação, o juiz Reuben Atlee), foi eleito e reeleito.

Então, nem socialista, nem contra o lucro, a livre iniciativa, o empreendedorismo.

É só uma revolta contra o excesso, o absurdo. Uma profunda indignação contra a inconcebível concentração de riqueza nas mãos de uns poucos, enquanto milhões estão mergulhados na miséria mais abjeta.

É só o tomar partido de qualquer Davi que enfrente qualquer Golias. É só um arraigado, figadal ódio pelas corporações gigantescas, que corrompem o tecido social, que fazem gato e sapato de tudo, inclusive da Justiça, e tornam a Justiça injusta, e portanto criam um sistema errado, inadmissível, absurdo, desumano.

          Não há sermão, editorial, panfleto – só tramas apaixonantes

Grisham expressa essas suas convicções sem em momento algum fazer sermão, editorial, panfleto. Bola tramas, personagens, situações, e narra com aquela narrativa seca e direta, econômica e pragmática, que faz o leitor não conseguir parar de virar as página, página após página, de tal maneira que só dá para deixar o livro de lado quando se chega à página 340, ou 350, ou 360, a última – nunca muito mais que isso, nunca muito menos que isso.

É um page-turner – não dá para parar de virar as páginas. Unputdownable – não se pode deixar o livro de lado –, como devem ser os thrillers policiais e/ou de tribunais, a literatura de lazer.

Dissolvida no meio do lazer, do ritmo page-turner, unputdownable, lá está a fábula, com sua moral. Sempre uma boa moral.

Uma das coisas que me fascinam em Grisham é que ele parece estar indo contra aquela regra básica de que as pessoas vão ficando menos rígidas, duras, estritas, rigorosas – radicais, em suma –, com o passar da idade. Especialmente quando junto com o passar da idade vem um considerabilíssimo aumento da conta bancária. “Quando somos jovens, nossos sonhos são mais fortes, mais poderosos.” Ou aquela coisa mais puída e desbotada que jeans muito velho: radical aos 20, burguês aos 30.

Grisham, não.

Quanto mais maduro (e rico) ele fica, mais revoltado.

Em seu livro de 1998, The Street Lawyer, no Brasil O Advogado, ele focaliza os sem-teto de Washington, a miséria que toma as ruas da capital do Império, não muito longe da Casa Branca, do Capitólio, do Lincoln Memorial – os grandes símbolos daquela que se diz a maior democracia do mundo. No primeiro capítulo, um homem miserável, negro, velho, invade uma das mais ricas firmas de advocacia da capital do Império, toma oito advogados como reféns e exige saber quanto eles ganham por ano, e quanto dessa soma eles doam para a caridade.

O protagonista, jovem advogado que está trabalhando 14 horas por dia para ganhar cada vez mais, representando os interesses dos Golias, de repente revê toda sua escala de valores – renuncia ao emprego excelente e cada vez mais promissor, e passa para o lado dos Davis.

A cada novo livro, os personagens que representam os Golias vão ficando ainda mais desprezíveis, mais sórdidos, mais odiosos.

Em 2009, depois de ler O Recurso/The Appeal, o livro de 2008, fiz esta anotação para mim mesmo, no meu doc Livros:

“Fernanda já havia dito que o livro é ótimo. De fato, é o melhor Grisham até agora. É muito impressionante como o Grisham está de saco cheio, puto da vida, mas muito puto da vida, com a situação atual de seu país, ou seja, a situação de seu país no último ano do governo Bush. Nesse sentido, o livro é meio um marco – mostra o fundo do poço do desencanto de um americano típico com o nível de selvageria a que chegou o capitalismo americano, onde as grandes corporações mandam e desmandam em tudo, no Legislativo e principalmente no Judiciário. Também nesse sentido, é interessante que o livro tenha saído pouco antes do estouro da bolha imobiliária que virou bolha financeira que virou a maior crise do capitalismo desde 1929. É como um alerta final: essa coisa não pode ficar assim, é preciso de regulamentação, é preciso de formas de proteger as pessoas comuns diante do poder sem limite do grande capital.”

No fundo, trata-se sempre é da ambição, esse valor básico da América

A busca de John Grisham por alguma Justiça, ainda que apenas em sua literatura, não cessa, não se acalma, não se aquieta. Ao contrário: vai ficando cada vez mais exasperada. Mais um paradoxo, entre tantos.

Há livros em que ele foca no quadro mais geral – de como, quando e onde a corrupção provocada e patrocinada pelas gigantescas corporações vai penetrando em cada camada do tecido social. É o caso do retrato da indústria do tabaco em O Júri, da indústria farmacêutica em O Rei das Fraudes/The King of Torts, da indústria de seguros em O Homem Que Fazia Chover. Em alguns deles, mostra como um trabalho a princípio decente de advocacia – por exemplo, a defesa de uma família vítima de uma situação de injustiça provocada por uma grande corporação – pode resultar em montanhas de dinheiro para um profissional a princípio honesto, correto, e virar-lhe completamente a cabeça.

A ambição – essa mola mestra do capitalismo, do american way of life. A ambição, o valor básico da América, a Terra do Sonho – algo que fácil, fácil, pode se tornar uma bola de neve capaz de destruir tudo que estiver pela frente.

Em A Intimação/The Summons, que acabei de ler há pouco, em vez de focar diretamente no quadro mais amplo, Grisham opta por outro caminho. Pega o exemplo de uma única pessoa – um sujeito que é honesto, nunca fez nada ilegal na vida, nunca prejudicou outras pessoas para se beneficiar – e a expõe ao perigo da ambição desmedida, desregrada.

          Um homem de bem, honesto, de repente se vê diante da tentação

O sujeito se chama Ray Atlee; tem 40 e tantos anos (o livro é de 2002, Grisham estava com 47 quando o escreveu), havia se formado em Direito na Universidade Estadual do Mississipi (exatamente como Grisham), é professor de alguma especialidade relacionada ao Direito Comercial na Faculdade de Direito da Universidade da Virginia, em Charlottsville (Grisham e família têm uma casa perto da cidade). É divorciado, sem filhos (Grisham é casado desde 1981, tem dois filhos), tem estabilidade no emprego, ganha razoavelmente bem, o suficiente para satisfazer suas necessidades básicas e mais um pouco, como, por exemplo, custear seu hobby de pilotar pequenos aviões nos fins de semana.

A intimação, The Summons do título do livro, não é, ao contrário do que seria normal supor, uma intimação judicial – e este detalhe é um interessante exemplo de ironia de um autor que em geral não usa muita ironia, e até parece desprovido de senso de humor. Ou que até usa alguma ironia, sim, mas em geral de maneira muita seca – uma ironia dura, sem qualquer humor, sem ginga de cintura. A intimação – aquela citada mais acima, a do lead do livro, que veio pelo correio, escrita numa máquina manual Underwood, em pleno ano 2000 – é uma carta com a assinatura do pai de Roy, endereçada a ele e também a seu único irmão, Forrest:

“Por favor, programem-se para comparecer ao meu escritório no domingo, 7 de maio, às 5 horas da tarde, para discutir a administração de meus bens. Atenciosamente, Reuben V. Atlee.”

(Para que a frase ficasse mais próxima do original, me permiti desrespeitar um pouquinho a tradução da edição brasileira, da Editora Rocco, responsável por todos os livros de Grisham lançados no Brasil, desde o primeiro.)

Reuben V. Atlee, o pai de Ray e de seu irmão caçula Forrest, havia sido juiz durante 31 anos em sua cidadezinha de Clanton, no Mississipi (lembrando: o Estado em que Grisham foi criado). Um juiz tão severo, rígido, rigoroso, quanto pai severo, rígido, rigoroso – e distante. Daquele tipo de pai antigo, para quem não existe diálogo possível com filho, não há caminho de duas mãos – o pai dá ordens, o filho escuta e obedece. Agora, quase chegando aos 80 anos, está à morte – mas mesmo assim espera-se que dê ordens. Lance intimação.

Tudo o que o velho juiz gostaria na vida teria sido que os filhos, após concluir o curso de Direito, abrissem na cidadezinha de Clanton um escritório de advocacia, onde ele, o juiz, iria também trabalhar, após a aposentadoria. E tudo o que Ray queria na vida era evitar exatamente essa perspectiva; por isso cascou fora de Clanton, do Mississipi, da sombra e da opressão do pai rigoroso, e em vez de advogar virou professor em outro Estado, bem longe.

E então chegou a intimação.

Na página 50 do livro que na edição de bolso tem 373, Ray e o leitor são absolutamente surpreendidos com algo inimaginável – e, como é inimaginável, não vou revelar aqui, mesmo que ninguém venha a ler este texto imenso e tedioso (a não ser para o autor, que gosta de juntar palavras assim como muitos dos personagens de Grisham gostam de juntar centenas de milhares, às vezes milhões de dólares).

Mas acho que dá para dizer, sem transformar isso em spoiler para eventual leitor deste texto, que Ray vai se deparar com algo parecido com a maçã oferecida pela serpente a Adão e Eva. Não sou nada bom em imagens bíblicas, mas poderia também ser algo como o bezerro de ouro que embevece a multidão de judeus no retorno da escravidão do Egito para a Terra Prometida, no momento em que Moisés desce do Sinai carregando a tábua dos dez mandamentos.

A maçã da serpente, o bezerro de ouro surge diante de Ray na página 50. O que Ray fará diante da tentação é o que Grisham narra nas 323 páginas seguintes.

          Uma obra sem grandes picos e vales – uma planície agradável

Não é dos melhores livros de Grisham, este A Intimação – pelo menos na minha opinião, e acho que também na opinião da minha filha.

Os livros de Grisham não costumam oscilar entre o péssimo e o ótimo, a depressão e a euforia, os vales e os cumes. Basicamente, para usar a comparação com termos geográficos, a obra de Grisham é uma planície agradável. Há poucos livros de fato bem mais fracos que os demais, como O Testamento, de 1999, em que a ação iniciada na Virgínia vai parar no Pantanal mato-grossense, resultado de uma viagem do autor ao Brasil, se não me engano como parte de um trabalho de caridade de sua igreja.

Há alguns mais brilhantes, como O Júri – uma trama especialmente bem armada, surpreendente, onde não faltam bandidos, mas à qual não comparecem mocinhos inocentes, puros –, ou, em especial, o já citado O Recurso, uma radiografia de como o poder da grande corporação pode chegar a manipular não apenas um júri, mas um tribunal superior.

A Intimação fica no meio termo. Não é pico nem vale, é planície – um bom livro, que se lê com imensa facilidade, com vontade louca de ver o que acontecerá na página seguinte. Não é literatura brilhante, mas é agradável de se ler – e defende valores corretos, importantes. Como sempre na obra do autor. Adversativos.

E aí, no mesmo dia em que li a última página de A Intimação, comecei a ler O Inocente, o único livro de não-ficção entre os 25 que Grisham já publicou até agora.

          Uma pequena tergiversão com histórias pessoais

E aqui me permito uma breve tergiversação para falar de coisas pessoais. Se porventura algum leitor desavisado e louco tiver chegado até aqui e se interessar por ler sobre O Inocente, deverá pular até o próximo intertítulo.

Minha filha e minha mulher partilham comigo do prazer de ler John Grisham, desde sempre. Muitas vezes Mary e eu lemos o mesmo livro juntos, nas férias, ela com um exemplar, eu com outro – para, ao jantar e à cachaça do fim do dia, discutirmos sobre as peripécias dos personagens. De uma forma que jamais conseguirei entender, Fernanda está sempre à minha frente, apesar da imensa carga de trabalho de magistrada e das outras cargas todas do dia-a-dia, muito mais pesadas que as minhas. Nunca consigo ler um livro antes que ela já o tenha devorado e deglutido.

Numas férias no início de 2009, eu estava lendo, depois de Fernanda, que o tinha me recomendado, O Recurso. Falei do livro para meu irmão Geraldo, e sugeri timidamente que ele o lesse. Digo timidamente porque Geraldo – um advogado, como Grisham foi – é um renitente e eterno socialista, com os necessários laivos de anti-americanismo, e além disso nada chegado a uma literatura de lazer. Assim, foi com grande surpresa que, em outra viagem ao Paraná, em dezembro de 2010, Geraldo me contou não só que havia lido O Recurso e gostado, como tinha também comprado e lido um outro livro de Grisham, O Inocente – do qual eu jamais tinha ouvido falar.

Num passeio com Geraldo pelo agradabilíssimo centro de Curitiba, que necessariamente incluiu uma passada pelo novo endereço da Ghignone, vi uma grande estante de livros em liquidação, e de lá retirei The Summons e A Painted House, dois títulos de Grisham de que não conseguia me lembrar. Na volta para São Paulo, trouxe esses dois exemplares comprados na Ghignone e mais o exemplar de O Inocente que Geraldo me emprestou – um Grisham que ele leu antes de mim!

          Nada é inventado: cada frase tem que estar assentada sobre testemunhos

O Inocente, como já se disse e repetiu, é uma obra de não-ficção. É a reconstituição, como se fosse uma história fictícia, de fatos reais, ocorridos a partir do início dos anos 80 no Estado de Oklahoma. Assombrosos fatos reais.

Há centenas de filmes que se dizem ou são mesmo “inspirados em fatos reais”. Neles se tomam muitas liberdades – basta colocar ao final dos créditos finais (que normalmente ninguém lê), em letras miudinhas, o esperto aviso tipo “embora inspirado em fatos reais, algumas situações foram modificadas por motivos de dramatização; alguns personagens são fusões de pessoas reais, e alguns nomes foram modificados a fim de preservar a privacidade de pessoas vivas”.

O que se diz nessas letrinhas pequenas ao final dos créditos finais que quase ninguém lê permite praticamente tudo. Permite-se fazer a mais pura ficção a partir de um ou outro elemento da história real.

Um livro que reproduz fatos reais é completamente diferente de filmes inspirados em fatos reais.

Não dá para criar, inventar, imaginar possibilidades.

Cada frase, cada descrição precisa estar assentada sobre testemunhos.

          Um texto no New York Times, e Grisham resolve dar a cara a tapa

E aí não dá para deixar de pensar em A Sangue Frio, o primeiro romance-verdade jamais escrito, o primeiro relato em forma de livro de fatos reais, sem qualquer tipo de ficção adicionado – novo jornalismo não em forma e tamanho de reportagem, mas de romance.

Ao escrever O Inocente, John Grisham teve a coragem de botar de várias formas a cara para bater. Ousou botar nas livrarias uma obra que seria obviamente comparada à de Truman Capote – e A Sangue Frio, afinal, é um dos livros mais elogiados, mais incensados, mais importantes do século XX. E ousou botar a cara à tapa para metade da população americana, a que defende a pena de morte, que quer o “justiçamento” de qualquer tipo de bandido ou de quem mesmo de longe pareça com um bandido.

Teve mesmo a coragem de dizer, ao final do livro, que resolveu escrever o livro a partir da leitura de um texto no New York Times, o necrológio de um homem que havia escapado por muito pouco da execução por um crime que não cometera. Como até as pedras das ruas sabem, foi no New York Times que Truman Capote leu a notícia sobre o assassinato de uma família inteira numa fazenda no Kansas, e resolveu que iria até lá reconstituir tudo, exatamente como aconteceu.

          Contar uma história fictícia é muito mais fácil que reproduzir a verdade

Naturalmente, não vou tentar, de forma alguma, fazer comparações entre A Sangue Frio e O Inocente em termos de qualidade literária. Não tenho qualquer tipo de cabedal para isso – ou interesse.

Mas algumas coisas são óbvias.

A história do crime do Kansas nos anos 60 é muitíssimo mais simples que a dos crimes na cidade de Ada, Oklahoma, nos anos 80.

A história real que Truman Capote, com seu imenso talento literário, transformou em livro de reportagem-em-forma-de-ficção é absolutamente simples. Dois sujeitos cometem um crime hediondo; são presos, julgados, condenados; o Estado comete o crime hediondo de assassiná-los, da mesma forma como eles haviam assassinado a família na fazenda.

A história real dos crimes na cidade de Ada é absolutamente complexa. Não é um crime só, são dois. O trabalho policial foi um horror pavoroso, um pavor horroroso – ao contrário do que havia acontecido no Kansas nos anos 60, nada ficou claro, nada ficou comprovado. Até hoje não se sabe quem de fato cometeu os crimes em Ada nos anos 80 – só ficou patente que os homens acusados, e condenados, não foram os autores.

Contar uma história fictícia é muito mais fácil do que reproduzir a verdade dos fatos. Sem dúvida alguma. O Inocente é uma prova cabal disso.

Ao reconstituir a complexa, confusa, tortuosa história dos crimes cometidos em Ada, Oklahoma, no início dos anos 80, e em seguida explicitar, esmiuçar todos os seguidos erros das várias instâncias de poder envolvidas, todos os diversos erros do Estado, tanto do Judiciário quanto dos Executivos estaduais e municipais, Grisham fez ao mesmo tempo um documento histórico importantíssimo e seu livro mais complexo, mais difícil, mais duro de se ler.

Ron Williamson, o protagonista do livro-verdade de Grisham, morreu em 2004. Pouquíssimo tempo atrás, portanto; outro dia mesmo. Grisham leu o obituário de Ron no New York Times e resolveu escrever sobre a história quando tinha, portanto, 49 anos de idade. Já havia publicado 17 livros, e certamente estava com o 18º, O Corretor/The Broker, pronto para lançamento – O Corretor saiu em 2005.

Estava rico, tinha dinheiro certamente para deixar confortáveis até os netos de seus filhos. Não precisava se meter em aventura alguma. Expor-se a comparações inevitáveis com um autor endeusado, uma obra incomparável, cuja feitura já rendeu dois filmes, Capote e Confidencial/Infamous.

Grisham levou 18 meses entrevistando pessoas, colhendo testemunhos, revisando os processos, os inquéritos, centenas de milhares de páginas.

O Inocente é uma trolha, mas é importantíssimo – de novo, e sempre, as adversativas.

Quem passar por esse livro e continuar defendendo a pena de morte é porque definitivamente não consegue somar 1 mais 1.

Tenho um profundo, profundo, profundo respeito por John Grisham.

          Janeiro e fevereiro de 2011

22 Comentários para “Um escritor fascinante, um amontoado de paradoxos”

  1. Será que a Marynha também leu O Juri ou ela é porreta demais ?
    Mãe

  2. Mestre Sérgio Vaz, aqui é Negão dos Santos do Paranga, São Luiz do Paraitinga. por onde anda, gostaria de te mandar o DVD Tributo a Elpídio dos Santos, com participação de Renato Teixeira que fizemos na minha(nossa) cidade. me mande seu endereço por favor
    muito obrigado de coração pelo que você fez por nós.
    Negão

  3. Adorei a retrospectiva Grisham. Acho que tambem li todos eles e que os críticos raramente perdoam o sucesso financeiro. Acho incrível alguem produzir 1 livro por ano, ano após ano e manter a bola no alto, sem cair. Já coloquei este último na lista para ler.
    Legal vc lembrar da influência do livro na minha parada de fumar.
    Abraços, Milcia

  4. Li todos. No original, para treinar o inglês.Agora estou relendo. Achei “The Painted House” o mais “literário” de todos.

  5. Para mim o melhor livro dele é “O Testamento”. Perfeito, sem tirar nem por, simplesmente na medida!!!

  6. Sergio, Gostei muito da sua analise e critica do Grisham, foi a melhor que vi até hoje. Eu sou advogado e grande fã dele e estou escrevendo um livro inspirado no estilo dele, mas focado em uma realidade brasileira. Será que voce teria interesse em le-lo e fazer uma visão critica? Se puder , ficaria muito contente.

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