A Espécie Humana. Capítulo 6

Lomdono é finalmente destruída.  (*)

Os invasores lograram êxito total na sua última tentativa de atacar a capital do império dos últimos reis do planeta. Pacotes de poderosíssimos alucinógenos foram despejados simultaneamente em todos os reservatórios de água da cidade. Uma semana e desintegrou-se a ordem. As pessoas espalharam-se pelas ruas, envoltas em panos, nuas, de quatro, arrastando-se atrás de miragens, perseguindo as pontas dos dedos, devorando pedaços dos próprios corpos. Pelas ruas, fezes e sangue e urina. Uivos e cantos de descontrole e choros e gargalhadas que nada significam. Portadores de tochas aumentam o horror quando, à noite, sabe-se guiados por que cruel instinto, passeiam pelas praças com seus mastros cheios de panos acesos. As mães trazem, nos colos, filhos trespassados por garfos e facas, os olhinhos inteiramente abertos para a loucura. Nas bocas dos que se encontram, risos idiotas e grunhidos de terror. Não se temem, não se amam, não se medem, não se comunicam: apenas estão um diante do outro. Os cães fogem no meio do pavor, perseguidos por moscas que não existem. As gentes, no furor, descobrem que carnes machucadas ficam vermelhas de sangue. As criaturas envolvem a criatura e, entre trejeitos e esgares e roncos, avançam com espetos e ferros e facas e aquele que está no centro, os olhos injetados e virados pelo avesso, sorri à espera da festa de abraços e espetadas. Aos poucos o cortam em pedaços e ele agradece e gargalha e diz maninhos, maninhos, irmãos em Deus, maninhos, e chora de felicidade e dor até silenciar como um bebê que definha. E saem os outros para os seus cantos, lavando-se com o vermelho tão excitante e quente e cheiroso e de estranhíssimo e remoto paladar. Dois outros, frente a frente, as palmas das mãos coladas, se olham, rígidos como esculturas de gelo, imóveis, estáticos, permanecendo assim até depois de mortos. Um pequenino se arrasta por debaixo de carros e lambe as gotas de óleo negro que escorrem pelo chão. E quando chegam ao rio, como é terrivelmente belo este rio avermelhado e cheio de corpos que bóiam coloridos e inchados!  Brincam com as águas, entram e se deixam afogar do meio do turbilhão e do delírio. Ou então fazem afogar os pequeninos, segurando-os dentro do rio e devolvendo-os ao ar, para sorrir e cantar, enquanto olham os rostinhos arroxeados e trêmulos dos que estão morrendo. Não há morte, não há dor, não há piedade no coração dos homens. Há presente e loucura. Há o que não tem antes e depois. O momento do agora é o senhor e Deus absoluto de todas as gentes. Há uma discutida ânsia de prazer. Não há causas para atos, apenas atos desencadeados entre si. Não há razões para a existência, apenas a existência em si. E porque desligada de todos os compromissos que cada ato cria para ter sua própria justificação e ressonância, a vida ganha o sentido único da loucura irreversível. Olhares esbugalhados pairam cheios de luz diante dos brilhos e das cores. Orelhas atentas se escancaram para todas as espécies de sons desordenados e irrequietos que povoam os espaços. Narinas ardentes arfam todo o tempo para não deixar esgueirarem-se os cheiros todos que escapolem das almas das coisas, coisas agora sem outra finalidade que a de ser a si mesmas. As mãos tocam e gozam tatos nunca antes tateados, queimando-se nos quentes, congelando-se nos frios, espetando-se nas pontas. Rolam e pulam e se atiram de encontro ao que lhes surge à frente, para sentir as possibilidades do toque. E suas mãos levam tudo à boca, para que suas línguas experimentem. Os gostos todos são buscados e não há critério para o que seja agradável e o que seja desagradável. Não há dor nem prazer mas sensação. Os sentidos se desejam saturados, desligados de vínculos com distantes e ininteligíveis noções de ética e prática.

Todos os sobreviventes são agora como grandes bebês idiotas que buscam a ânsia da experiência, sem aprendizado contudo. Onde o político, onde o usurpador?  Onde o serviçal, onde o delinqüente?

Nada. Destruídas as categorias todas. Soltos e perdidos nos corredores e nas ruas e nos prédios e nos túneis do metropolitano, o bando inútil, pacífico e desnecessário daqueles que só sentem e nada concluem.

O formigueiro do zero. A ausência da relação.

O grupo de alunos que dança ao redor da professora morta com espetadas de todos os lápis e não dá atenção ao mais pequenino que chora com seu choro de desespero lúcido, já que bebeu apenas a laranjada de sua merenda, o grupo não ouvirá jamais o significado da palavra responsabilidade porque há de dançar alucinado até a exaustão e a morte.

Os trabalhadores da imensa construção que sobem em nervosíssima e rígida fila, seguros uns aos outros por mãos na cintura do que está à frente, estes trabalhadores não ousarão dia nenhum batalhar pelo sentido da palavra ideal, pois que a fila termina à beira do abismo de trinta andares e um à sua vez salta para o vôo precípite até o monte de argamassa vermelha lá embaixo.

O desvairado jovem, escondido atrás dos carros arrebentados, com duas enormes agulhas nas mãos, que se arremessa contra velhos e velhas passantes, para assistir ao desengonçado balé de sua cegueira, monologando urros e gemidos orgásticos, esse jovem jamais abrirá um livro que discuta as virtudes daquilo que pretende ser humano nem ouvirá na consciência o eco machucador do arrependimento que propõe pedaços de futuro.

Esparramam-se pela cidade esparramada e contaminam com sua total ilogia a desesperada lógica sobrevivente. Aqueles que, por um motivo ou por outro, por terem bebido pouca água, ou mesmo nenhuma, aqueles que se espantavam com o tamanho do desvario devastador, acabam por entregar-se à sedução do caos. A linha que separa a lucidez da insanidade dança diante dos fatos todos, cores e tumultos e sons do apocalipse. O muro que divide o sonho da vigília, antes muralha grossa e protegida por sensações de irrecusável percepção, agora mirabolante ruína sinuosa cheia de brechas e furos e passagens escusas, o muro mistura aquilo que é com aquilo que não é. Que resistência ao irreal poderia durar tanto tempo?, ante o fascínio da destruição avassaladora!

Foi então que Eles se chegaram.

Vindos não se sabe de onde, reunidos não se sabe por qual artifício. Vestidos de branco, não se sabe com que fim, jovens de quinze a vinte anos, imberbes todos, com seus cabelos demasiado curtos, desfilando com estandartes onde se lia as palavras avulsas: Deus, Democracia, Liberdade. Chegaram em trens imensos, de todos os lados e foram se dando as mãos e formando um círculo monstruoso que quase envolvia toda a cidade. Muita ordem e um silêncio de formigas ocupadas.

Subitamente irrompeu seu canto pelos ares. A princípio baixinho, quase imperceptível. Todos os homens são irmãos, uma só é a Terra, a terra-mãe que quer seus filhos irmanados numa só grande pátria. Todos os homens são irmãos, todos os homens são irmãos.

Intensificaram-se lentas as vozes e junto às palavras que cresciam em volume, crescia também o júbilo e a emoção do exército branco. Avançavam e se aproximavam das criaturas de mente desintegrada e tentavam chamá-las á consciência e à ordem. A população os examinava curiosa e demente. Não se submetia, contudo. Impossível qualquer contacto. Não havia entendimento algum, apenas êxtase fulminante frente à fileira imaculada e os estandartes com os desenhos a voar no meio da poeira, Deus, Democracia, Liberdade.

Havia paciência e boa-vontade nos corações idealistas. Tentavam novamente algum ensinamento, quebraram suas fileiras eficientes e se polvilharam à procura da alucinação que permitisse um qualquer tipo de salvamento. O bando branco de voluntários, filhos do primeiro mundo, condicionados a vencer a tentação do prazer irresponsável, treinados a pensar sempre e primeiro no grandioso destino do homem, o exército do futuro da humanidade sucumbiu. Sucumbiu o exército branco.

Primeiro os mais fracos. Adotaram a estratégia de se fazer de loucos para ganhar a confiança dos drogados. A princípio com total consciência sobre a divisão que havia entre eles. Depois perdidos e finalmente fragmentados. Misturaram-se por completo.

Algo os separava dos outros, todavia. Percebiam-se diferentes. Chamas esquivas brotavam de seus olhares. Sentiam-se cúmplices e unidos. Faziam tentativas de comentar sobre o tormento a que assistiam, sobre a incapacidade de sua luta, sobre o terror de não estarem conseguindo escapar do contágio da fúria. Perdidos no interior do inferno, puseram-se a brincar com os indefesos isolados. Experimentavam-nos, testavam-nos, açulavam-nos a fim de descobrir vestígios mínimos de vontade. O jogo os excitou e despertou neles o demoníaco sadismo. Como crianças, que tivessem à sua disposição animais fracos e desarmados e abúlicos, pariram no mundo as ações filhas da crueldade e mães da destruição inapelável.

As igrejas foram recheadas de gente e a seguir trancadas e queimadas. Alucinados foram enfileirados e, no centro da imensa praça, eram degolados. Um grupo de brancos imberbes descobriu o esquartejamento com motos. Amarravam mãos, pés e cabeça em cinco motos dispostas nas pontas de uma estrela desenhada a sangue sobre o chão. E arrancavam.

Seu esplendor, todavia, foi a crucificação dos milhares, no parque. Descoberto que foi, ao acaso, um depósito imenso com brilhantíssimos espetos de aço, para exportação, a visão dos ferros sugeriu a vertigem. As vítimas se oferecem aos risos e guinchos, bocas babantes e olhos sem trajetória. Despidos são e se põem a dançar balançando tiras de vestes rasgadas. Até serem trazidos pelos terríveis enfermeiros, imensos martelos na mão, deitados e pregados no gramado. Gritos lancinantes, não de dor, mas de morte. Avermelha-se o chão imenso, acelera-se o horror. Um dia e uma noite dura todo o espanto.

Lentamente desamarram-se as sobras do real. As cores voejam absurdas e fantásticas, atraindo os olhares cristalizados. Prismas iluminados dançam mutantes sem órbita traçada dentro de alguma possível previsão. Braços e bocas e unhas e sexos flutuam à procura do que já não os pode soldar dentro de qualquer ordem. De todos os pedaços de coisas brotam estranhíssimos sons, primeiro uma musicalidade brilhante e enfeitiçadora, depois um zumbido metálico e penetrante até dissolver-se numa linha contínua e insistente, já não som nem brilho nem cor nem cheiro nem sensação outra se não a sensação de que o tempo presente acabou de parar na eternidade.

Fez-se uma nebulosa total e negra.

 (*) Lomdono: cidade inexistente, de cujo nome se tira o anagrama “lo mondo”.

A Espécie Humana, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.

Leia o capítulo anterior.

Leia o capítulo O.

Continua na semana que vem.

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