Paris

Hemingway tinha razão: Paris é mesmo uma festa. Milhões e milhões de pessoas que souberam disso antes de mim tinham razão: Paris é escandalosa, despudorada, absurdamente linda.

Comer e beber em Paris

Ver comprova o que se sabe por ouvir dizer e ver nos filmes: há lugar demais para se comer e beber em Paris. Parece que há mais lugares para se comer do que gente para comer. Será que os donos dos lugares e seus empregados saem do seu pra comer no vizinho?

Conforme ensinam os entendidos como o Saul Galvão e os já viajados como a Mary, há toda uma hierarquia militar nos lugares para se comer e beber. De soldado raso a general, há bares, crepéries, bistrôs, brasseries, restaurants. Não entramos nos lugares de capitão pra cima, é claro, mas, pelo que se vê, em todos há uma mesma regra: bebe-se e come-se apertado, mais perto da mulher do vizinho de mesa do que da nossa.

Só que, ao contrário do que acontece nas cantinas italianas dos filmes socialistas à la Nós Que Nos Amávamos Tanto, o fato de se sentar grudado nos desconhecidos da mesa ao lado não nos torna uma grande união solidária. Ao contrário: il faut fingir que estamos a uma distância civilizada do outro, e que não estamos ouvindo a conversa dele, e vice-versa. Mas – paradoxo – ao final da refeição não é incomum que o companheiro de lado se vire para você e se despeça como se fosse um conhecido dos tempos do colégio. Uma senhora de mais de 60 anos se despediu simpaticamente de nós ao sair do Pepone, um italiano miúdo como a generosidade dos americanos numa ruazinha pequena de Saint Germain, a Rue Gregroire; e uma moça très charmante de seus 40 e tantos fez o mesmo no Bristrô Saint Emillion, gostoso lugar na Rue de Harpes, na fronteira de Saint Germain com Quartier Latin, a duas quadras do Sena.

Há algo surpreendente no fato de que, na capital mundial da boa comida, os lugares pra se comer mais parecem aqueles hotéis modernos do supersuperpovoado Japão, onde os fregueses dormem em locais pouco maiores do que um armário ou escaninho pessoal de clube ou fábrica.

E o fato é que paga-se não tanto pela comida ou pela bebida, mas pelo preciosíssimo espaço que você ocupa à mesa. Assim, por exemplo, pagamos mais de 9 euros – cerca de 12 dólares – por uma água mineral (ruim e não gelada) e dois cafés puros em duas ocasiões, em que na verdade estávamos mais interessados em descomer e desbeber no toilette do estabelecimento do que nas iguarias servidas à mesa. (Mais sobre os preços das coisas no item específico.)

Mas de uma coisa não se pode reclamar: uma vez você instalado à mesa, o espaço é seu, não importa quantos pobres coitados se amontoem na fila de espera. O garçom que olhou pra você com desprezo na hora em que você entrou e fez seu pedido não sugerirá nunca, nem sequer da maneira mais sutil, que você se levante.

 Les carissimes

No final dos anos 80, começo dos 90, os brasileiros invadiam Buenos Aires à cata de quinquilharias, achando tudo baratíssimo. Saíam das lojas de artigos de couro ou outras do tipo dizendo “foi baratíssimo”. Numa sacada de brilho, o Paulo Totti os apelidou de los baratissimos.

Na Paris em que uma garrafa de água, pequeniníssima como os espaços nos restaurantes, custa 3,20 euros, ou quase 4 dólares, ou cerca de 11 reais, ou seja, umas dez garrafas de água de melhor qualidade, hoje há uma fantástica variedade de homo brasiliens, que se vangloria de ir às Galleries Lafayette e mandar baixar o estoque, e sai feliz da vida dizendo pras amigas: comprei coisas carííííssimas! Na fila para o check in de volta de Paris para São Paulo um ser dessa espécie exultava: tinha gastado uma média diária de 241 euros, excluído o hotel.

 Os franceses gostam quando você tenta falar francês

Isso é o que sempre se diz. Pela minha humilde experiência, é uma lenda, uma invenção, uma criação literária sobre um país que adora a literatura (todos os escritores franceses são nomes de rues, avenues, boulevards).

Os franceses ficam très ennuyés quando você tenta falar francês com eles. Bom, ao menos com quem tem, como eu, um francês um pouco mais porco do que um imigrante argelino recém-chegado.

Você está lá tentando formar uma frase que não seja nóis vai, e ele já passa rápido, bored como um lord, para o inglês. Foi assim com a gente com garçons, atendentes de loja de disco, de tabaco, de bar.

Uma garçonete da Toastíssimo!, fast-food de uma rede, na Odeon, de imensos olhos verdes, me olhou como se eu fosse o mais horroroso dos ETs do bar do Star Wars volume 3, quando eu pedi um francesímo croissant, e vomitou pra mim: INERÔ! Mas não disse one euro, e por isso essa observação está fora do contexto.

Mary não concorda com essa minha impressão. Acha que os franceses gostam, sim, quando você tenta falar francês. E atribuiu minha impressão ao fato de que eu fico me cobrando falar um francês nativo tendo tido apenas parcas lições no ginásio.

 A falta de lógica dos preços

No país de René cogito ergo sum Descartes, a lógica não impera – ao menos nos preços. Condescendente, cheio de boa vontade, fiquei imaginando que isso se devia, ao menos em parte, ao fato de que eles estão tendo uma experiência radicalmente inédita de estar lidando com uma nova moeda, depois de centenas de anos de convivência pacífica com o franco.

Um parênteses: o franco e o euro

O que requer um parênteses. O euro entrou em circulação definitiva em janeiro de 2002 – ou seja, um ano e dez meses antes da minha primeira visita a Paris. E entrou em circulação depois de um bom período de tempo de convivência com o franco: durante pelo menos um ano antes de janeiro de 2002, ao lado dos preços em franco gravava-se o valor em euro.

Aqui nesta terra bárbara, usou-se a URV, antecedente do real, durante uns três meses, e aí pá: entrou o real, dançou o cruzeiro. (Ou será o cruzeiro novo? Ou o cruzado novérrimo? Não me lembro mais.) Tudo bem: a comparação não é plausível, já que aqui trocamos mais de moeda do que eles de camisa, mas a troca de camisa deles já é assunto para outro tópico. Mas, cacildabecker, que gente danada de vagarosa, não?

Até agora, quase dois anos depois de o país ter uma nova moeda, tudo, mas radicalmente tudo, vem expresso nos dois valores: em euro, e também em franco, uma coisa que não existe mais, a não ser na história. Também tudo bem que eles gostam de história – e eles gostam demais; mas, cacildabecker, que dificuldade danada pra aceitar uma mudança, não?

Mary chegou a pensar que talvez a expressão dos valores em francos após um período tão longo de existência do euro fosse uma forma de mostrar aos franceses, na prática, que os valores das coisas não mudaram, que tudo continua como antes, que não houve inflação na passagem do franco para o euro.

Pode ser.

E, afinal, se aqui, na hora de comprar um disco, na capa viessem pregados os valores das moedas anteriores, como acontece lá, não poderia haver CD, nem compacto simples, nem 45 – só LPs duplos, pra haver espaço pro valor em cruzeiro, cruzeiro novo, cruzado, cruzado mais que novo, cruzeiro da zélia, pós-cruzeiro do funaro, mil-réis, etc.

A falta de lógica dos preços (2)

Agora, se de fato a lógica dos preços lá não se dever à introdução da nova moeda, se os valores tiverem sido sempre esses mesmos, que louca é a lógica do país da lógica.

Uma Coca-Coca custa 3,20 euros, o mesmo preço de uma água mineral. Mas a mesmíssa Coca-Coca pode custar 0,50 euros como parte de um menu numa creperie do Boulevard Saint-Germain, ou 1,20 euros num vizinho mercado. OK, o Maksoud pode cobrar 20 reais por um Guaraná que custa 1,20 num bar ao lado, e isso é lógico.

Mas que tal esta? Um sanduíche quente com queijo, presunto, manteiga, custa 2,50 euros, enquanto uma água mineral custa 3,20.

Uma viagem de avião a Londres custa 29,50 euros, o equivalente a dois menus médios em qualquer lugar.

Uma bicicleta de várias marchas custa 145 euros, enquanto uma miniatura de super-herói, anunciada a poucos metros, ultrapassa 300 euros.

Ou seja: com uma miniatura de super-herói, vai-se a Londres e se volta dez vezes.

Uma passagem de metrô, com quantas transferências forem necessárias, custa 1,30 euros, quase três vezes menos que uma água mineral.

Uma revista mensal de papel de extraordinária qualidade, cheia de fotos, custa 3 euros, ou menos que uma Coca-Cola.

Ou ainda: compram-se três revistas mensais por menos do que se paga por dois cafezinhos e uma água de má qualidade, e quente.

Uma entrada para uma exposição extraordinária como a de 300 obras do Gauguin sobre o Taiti custa 7 euros, o preço de duas Coca-Colas. Menos que uma entrada de um cinema da rede mk2, que sai a 8,20 euros.

E o fato é que, além de ilógicos, os preços são altos. Paris é uma das cidades mais caras do mundo. Quando a gente precisa de suados 3,45 reais para comprar um único euro, então, aí é coisa de louco.

Só pra dar um pequeno exemplo. Ainda no free shop do aeroporto de São Paulo, anotei que a garrafa de Cutty Sark custava 14 dólares. Numa mercearia da Rue de Bac, a mesma garrafa do mesmo Cutty Sark custava 14,95 euros – e 1 euro vale 1,18 dólares!

Uma única dose de um uísque oito anos custa, nos mais simples lugares de se comer em Paris, 6 euros, ou até mais. 

Os nomes das praças e ruas

Cidade em que cada esquina reserva uma surpresa, em que cada casa antiga é umas 200 vezes mais preciosa que o conjunto da obra do Niemeyer, Paris, assim como a língua francesa, não se contenta com pouco. Há as mais variadas palavras para designar os acidentes geográficos urbanos. E todos são lindos, sonoros, charmosos: Place, Square, Carrefour, Quai, Rue, Avenue, Boulevard, Alée, Passage, Impasse.

Impasse não é fantástico?

Square também é uma delícia.

Por exemplo, a Place des Vosges, aquele conjunto arquitetônico que vale por umas quatro Brasílias. Ela é uma praça, certo? Um quadrado formado por construções em quatro ruas que formam um quadrado. Pois dentro dela existe a Square Louis XIII. Eta língua fantástica. Uma palavra para o contendor – as construções – e outra para o conteúdo – o jardim.

Os sons das ruas

Nas ruas de Buenos Aires não se ouve tango, ao contrário do que seria normal se esperar. Nas ruas de Paris ouve-se ainda, neste início de novos século e milênio, o som que se espera ouvir nas ruas de Paris.

Nossa viagem teve o som das ruas de Paris no começo e no fim. No primeiro dia, a sexta-feira, 26 de setembro, depois de entrarmos na Notre Dame, fomos andando pela pracinha que fica atrás dela, à direita, junto do rio; sentamos num banco ao som de um velhinho que tocava ao acordeon – como se tivesse sido contratado para fazer isso naquele exato momento – “Sous le Ciel de Paris”. Era finalzinho da tarde; ficamos um bom tempinho sentados ali ouvindo o velhinho e observando se as pessoas que passavam davam bola ou dinheiro para ele. Algumas deram, sim, observou Marynha.

Um pouquinho adiante, tinha um grupo, na ponte que une a Île de la Cité à Île de Saint Louis, tocando um jazz.

No penúltimo dia, a segunda-feira, 6 de outubro, andávamos exatamente naquele mesmo lugar, os fundos de la Cité, diante da Saint Louis, quando vimos outro velhinho tocando acordeon. Era comecinho da noite, e chovia fininho. Paramos diante dele, no outro lado da ponte. Marynha atravessou a rua pra dar a ele 30 centavos de euro (e agora penso que fomos pão-duros, na nossa despedida dos sons das ruas de Paris). Marynha diz que ele agradeceu muito, sorriu e desejou “boa semana”.

Outros sons:

– Na frente da Notre Dame, dois violinistas tocavam um jazz bem swingado;

– Em um túnel de estação de metrô, não me lembro mais qual (passamos por tantas…), três sujeitos com cara de índios andinos tocavam naquelas flautinhas andinas – pífanos, segundo a Marynha – “Sounds of Silence” e depois “Let it be”.

– Também na praça diante da Notre Dame, à direita dela, na Nuit Blanche, um rapaz cantou “Revolution”, de John Lennon, acompanhando-se à guitarra. A voz era boa, a pronúncia das palavras muito nítida, mas o amplificador dele era uma droga absoluta, coitado.

– Na praça diante da Église de Saint-Germain de Près, a do café Les Deux Magots, onde Sartre tomava café e agora os turistas gastões se espremem feito bocós, cinco caras tocavam jazz tradicional.

– Juntinho do rio, na Ile de la Cité, na Nuit Blanche, um grupo de jovens mandava ver uma batucada até melhor que as que se ouvem nos botequins paulistanos. Pairava no ar um nítido cheiro de maconha e um clima de festa gostosa.

– Debaixo das arcadas centenárias da Place de Vosges, no domingão, 5 de outubro, um grupo grande de jovens – uns dez, pelo menos – tocava peças clássicas em cordas: violinos, violas, violoncelo. Uma mocinha bonita e simpática passava entre os turistas oferecendo exemplares dos dois CDs do conjunto, a 20 euros cada; agradeci polidamente, mas ela insistiu: E monsieur não quer dar algum para incentivar os rapazes? Monsieur, pão-duro e vindo do Tiers Monde pobre, não meteu a mão no bolso.

O som de Deus

Estávamos dando a volta no interior de Notre Dame, passando exatamente atrás do altar e do coro, quando o órgão centenário começou a tocar uma peça religiosa. Um senhor me entregou um papel tamanho ofício com os textos das orações e dos cânticos a serem executados – estava começando um ofício religioso. Dois padres entraram na área diante do altar, um coral de jovens tomou posição, e um solista – um garoto de não mais de 18 anos – começou a cantar bem diante de nós, ao microfone, com uma voz absolutamente angelical. Quasímodo, nas escadarias, deve ter suspirado profundamente.

Os anúncios no metrô e nas ruas

Numa cidade de tantos eventos culturais (haverá alguma cidade no mundo com mais eventos culturais que Paris? Eu duvido. Nem Nova York, eu acho), nada mais natural que os anúncios de filmes, shows, peças, exposições, concertos, dominem a cena, nas ruas e nas estações do metrô. Anuncia-se mais cultura, em Paris, do que carros, comida, ou qualquer outra coisa.

Talvez o único item que chegue perto da cultura seja o turismo. Anuncia-se muito turismo, em Paris. Durante este período que passamos lá, o que predominava era uma campanha da British Airways para convencer os parisienses e os franceses de passagem por Paris a irem a Londres. Não havia uma estação de metrô sem um, dois, três ou mais anúncios dessa campanha:

Londres, Londres ou Londres? – era o titulão, em letras garrafais.

Embaixo, pequenininho:

3 aéroports: Gatewick, Heathrow et London City – E 29,50

Ou então o titulão:

E 29,50

E, pequenininho:

Londres est plus proche que vous ne l’imaginez.

O Eurostar, que faz o trem Paris-Londres, via Eurotúnel, replicava, mas numa campanha bem mais modesta e menos visível:

Plus vite au centre de Londres. 2h35. E, em corpo menor: 2h35: meilleur temps de parcours.

Uma campanha que me impressionou era sobre violência. Em cada estação de metrô, havia um painel dela, com uma foto de um jovem e o grande título:

La violence, moins on en parle, plus ça fait mal

Embaixo, o nome da campanha, e, acho, um telefone para contato:

Jeunes Violence Écoute.

Me pareceu que é uma campanha sobre a violência doméstica contra os jovens. Mas não é absolutamente claro; pode ser sobre a violência dos próprios jovens. Não sei.

O tema violência voltará em seguida, logo abaixo. Infelizmente.

Nos anúncios culturais, de tudo. A gigantesca exposição da fase Taiti do Gauguin no Grand Palais em reforma. O novo disco da Cesária Évora e sua próxima turnê por Paris, em 2004. (Anunciam-se eventos culturais com uma antecedência colossal.) A próxima turnê dos The Doors 21st Century, sem Jim Morrison, enterrado no cemitério de Père-Lachaise (onde estão também Edith Piaf, Yves Montand e Simone Signoret, entre tantos outros). Hedda Gabler, peça do Ibsen dirigida por Monsieur Polanski en personne, com Madame Polanski, Emmanuelle Seigner, no papel título. (“Cette jeune femme passionée entretien une saine ambition, celle d’apprendre, de s’améliorer”, diz dela o Figaro de 7 de outubro.) A versão teatral de Les Demoiselles de Rochefort no gigantesco Palais des Congrés, em frente do qual passamos de ônibus voltando de La Défense (e que fez o Figaro dar a última página com Michel Legrand, em que o jornal confessa que a França andou meio esquecida do grande músico). Uma peça com André Dussollier, o ator de Resnais. Uma peça com Irène Jacob, a atriz do Kieslowski. Uma peça com Richard Berry, o ator do Lelouch, com texto adaptado por ele, Berry. Os filmes de ação e aventura da estação – Bad Boys II, com Will Smith, A Liga Extraordinária, com Sean Connery. Os filmes românticos da estação – Le Divorce, Je reste!

Mas, dentro do capítulo anúncios culturais, um filme se sobressaía, e demais – Janis et John. Janis et John estava em todos os lugares da cidade. (O filme estrearia no dia 15 de outubro, poucos dias depois de nossa volta ao Brasil, que foi no dia 7.) E o que seguramente mais impressionava nos anúncios todos não eram as figuras lendárias de Janis Joplin e John Lennon (acharam um ator muito, muito parecido com ele), mas a da atriz que faz Janis, Marie Trintignant.

Un million et demi de femmes battues

Umas duas décadas atrás, uma tragédia assombrou o mundo, mas especialmente as pessoas mais bem informadas, mais intelectualizadas: um grande filósofo francês – Louis Althusser – teve um acesso de loucura, matou a mulher, dentro de seu apartamento em Paris, e em seguida se matou, ou tentou se matar, não me lembro bem.

Já a tragédia de Marie Trintignant, dessa vai ser difícil esquecer.  

Ela aconteceu em junho – tão pouco tempo atrás. Três meses, apenas, antes da nossa estadia em Paris; três meses e meio antes da estréia do último filme que Marie Trintignant concluiu na vida.

Dentro de poucos dias ela estará nas telas. Já está nas fotos em todas as ruas, nas estações de metrô, na pele de Janis.

Está nas bancas de revista, na capa da Paris Match datada de 2 a 8 de outubro – uma foto de Nadine Trintignant em sua casa, ao lado de um porta-retrato com uma foto preto e branco de Marie, com o título: “La haine est en moi” – o ódio está em mim.

Está em exposição, com grande destaque, em todas as livrarias, o livro de Nadine, “Ma fille, Marie”.

Li as 38 primeiras páginas do livro no vôo de volta para o Brasil. Não é propriamente bem escrito – é um tanto desagradável o fato de Nadine escrever o tempo todo dirigindo-se à filha morta; vai e volta no tempo talvez um tanto desnecessariamente; não relata objetivamente os fatos da tragédia – mas não se poderia mesmo esperar objetividade, é claro. O que não se pode dizer ou pensar é que Nadine esteja fazendo sensacionalismo. Ou melhor, ela está, sim, fazendo sensacionalismo, mas claramente por uma causa. Ela quer vingança.

E quem não iria querer vingança contra o assassino de sua filha?

Os anúncios no metrô pedem que se fale às claras sobre a violência envolvendo os jovens – quanto menos se falar da violência, piores ficam as coisas. Melhor remexer no lodo que fica embaixo da água, melhor deixar a merda subir à tona, melhor expor a imundície.

Nadine Trintignant bota a boca no mundo contra a violência dos machos diante de suas mulheres, essa chaga aberta fenomenal que não poupa a nação que se orgulha de ser uma das mais civilizadas do mundo:

“Les ‘femmes batues’. Comment leur dire de ne pas accepter? Jamais! Elles sont un million et demi en France. En 1999, il n’y a eu que dix-sept mille plaintes. La plupart de cogneurs ont bénéficié de non-lieux. Un sur trois a été jugé. Ils ont écopé de peines avec sursis.”

O Brasil viveu uma experiência um tanto semelhante com o assassinato da jovem Daniela Perez, atriz da Rede Globo e filha da famosíssima autora de novelas Glória Perez. Glória, assim como Nadine, foi à luta contra os assassinos da filha. Causou comoção nacional.

Mas a tragédia de Marie Trintignant é ainda mais brutal. É muito mais brutal – o assassino é o amante! E acontece não num obscuro país do Tiers Monde, mas no coração de uma família da mais alta nobreza do cinema da pátria da solidariedade universal. 

Que triste cidade, a minha

Tempos atrás, a Miryam Lúcia, a minha amiga que virou americana, fez cara de nojo sobre São Paulo, vomitou sobre a péssima qualidade de vida daqui. Achei que era frescura de quem, como na música, voltou americanizado.

Em Paris, pela diferença, pelo contraste, senti fundo, na pele, na barriga, como é triste a cidade que escolhi pra viver.

E não é pela beleza de Paris, tão estrondosa quanto a feiúra de São Paulo. Nem pela quantidade de lindíssimos jardins, praças, parques, monumentos. Nem pela diferença tão chocante entre o Sena verde-escuro e o Tietê negro. É por tudo isso também, é claro. Mas é, sobretudo, pela tal da qualidade de vida.

As cidades acontecem nas ruas, muito, muitíssimo mais do que nos locais fechados. (Eu já sabia disso quando tinha 21 anos e, foca, fiz uma bela matéria sobre o carnaval do Recife, a grande festa que estava, na época, correndo o risco de deixar as ruas para se esconder nos clubes.)

O povo lota as ruas de Paris. Indiferente aos bandos de turistas, ao frio, à chuva, o povo lota as ruas. Formam-se bolos de gente nas esquinas, no meio das quadras, para se decidir onde ir em seguida, ou simplesmente para se conversar. Casais se agarram pelos cantos ou pelos centros. Famílias passeiam – os pais parecem um tanto impacientes com suas crianças, é verdade, mas isso é outra coisa. Os espaços diante das igrejas ficam cheios, aos domingos; as pessoas conversam na rua antes de entrar na igreja, ou depois de sair da igreja. Os 200 trilhões de bares, crepéries, bistrôs, brasseries, restaurants abraçam a rua, debruçam-se sobre a rua, avançam sobre a rua; in é estar out. As pessoas tomam as ruas no sábado, no domingo, nos dias de semana, de tarde, de noite. Pessoas muito jovens, pessoas muito velhas, pessoas entre uma coisa e outra. A rua é das pessoas, como a praça é do povo, o céu é do condor, todo mundo na praça, quanta gente sem graça no salão. 

São Paulo perdeu a rua.

O centro e os centros dos grandes bairros de São Paulo ficam cheios de gente que está indo pro trabalho ou voltando do trabalho, ou indo fazer compra, ou indo tomar providência, ou indo fazer alguma coisa. Não há gente nas ruas pelo prazer de estar nas ruas, para encontrar pessoas, para se distrair, para sentar num banco de praça. Quando há gente, é gente andando, indo – nunca parando. À noite, as ruas ficam desertas, sem pessoas, só com carros. 

São Paulo virou uma brasília, aquele triste lugar sem esquina, sem rua, autorama.

Não importam os motivos – se é a violência, se são os assaltos, os seqüestros relâmpago, ou a praga dos shopping centers, esses assassinos de cidades. O fato é que São Paulo há muito tempo perdeu a rua, o prazer da rua. Isso é que é o mais chocante de tudo – e essa noção terrível fica estupidamente clara na comparação com o reboliço constante das ruas de Paris.

Mais do que a diferença entre a beleza de Paris e a feiúra de São Paulo, o Sena e o Tietê, o casario escandalosamente bonito de lá e o cinzento dos prédios sem graça ou estilo daqui, os dois mil anos de civilização de lá e a nossa pobreza daqui, o que choca é essa disparidade do povo na rua.

O Estado

Paris é muito provavelmente a cidade mais cheia de grandiosidade que existe no mundo.

Não que tudo seja grandioso. Como já mais do que ressaltei, os espaços nos lugares pra se comer, por exemplo, são ínfimos. E há muita beleza em coisas pequenas, como as ruas apertadinhas da Île Saint Louis, do Quartier Latin ou de Saint Germain; as minúsculas lojas de miniaturas; as miniaturas; as casinhas centenárias; os pequenos edifícios tortos; as pracinhas tomadas por pequenos cafés ou restaurantes, como a Place du Marché Saint Catherine, no comecinho do Marais, ou a Place de la Contrescarpe, no início da Rue Mouffetard, ou a Place du Tertre, em Montmartre, só pra citar três em que a gente andou.

A própria edificação que para mim é a mais impressionante de todas, a Notre Dame, não é gigantesca; é muitíssimo menor, acho, que a Igreja de São Pedro, em Roma, a Saint Paul Cathedral, em Londres, ou talvez até a Saint Patrick, em Nova York. É menor até, acho, do que outras igrejas da própria Paris – a Basílica de Sacre-Coeur, em Montmartre, ou a Saint Eustache, na boca do que hoje é o Forum des Halles.

O quadro mais procurado pelos turistas, a Mona Lisa – que, é claro, não perdi tempo para ver – é pequetitinho, assim como a mais famosa escultura, a Vênus de Milo.

Voltando, então: não que tudo seja grandioso. Mas, cacildabecker, quanta grandiosidade tem ali.

Pegue-se o Hotel des Invalides, e o imenso espaço gramado à frente dele. O Champs de Mars. O Louvre. O Pantheon. O domo atrás dos Invalides. O Hotel de Ville. As Tuileries. A moderníssima Grande Arche. São espaços e construções monstruosos, monumentais, gigantescos, faraônicos, bourbônicos, absolutísticos.

São espaços e construções que só um Estado forte, poderoso, rico, concentrador, taxador, esfoliador da população, poderia construir. Não é nada da iniciativa privada. É do Estado absoluto.

E é um Estado absoluto que permanece absoluto, por mais que passem as revoluções. Estão lá, hoje, os espaços e construções gigantescos mandados construir pelos reis Bourbon da época do L’État C’Est Moi, convivendo com os mandados construir por Napoleão, aquela figura miúda que é a própria encarnação da mania de grandeza, até mesmo no número de pessoas que suas guerras assassinaram, e que veio depois da grande Revolução de 1789, feita para acabar com a monarquia tão absoluta quanto absurda. E pelos Napoleões que vieram depois dele, e que depois viriam também a ser derrubados. E até pelos presidentes das diversas repúblicas que vieram nos últimos 130 anos, seja de direita, Pompidou e seu Beaubourg, seja de esquerda, Mitterrand e suas grandiosidades, Grande Arche, nova Biblioteca Nacional, Pirâmide do Louvre.

É tudo tão grandioso, e tão centenário, que tudo precisa passar eternamente por reformas. Assim, neste ano de 2003, 13 anos após o fim do Império Soviético e da supremacia sem qualquer rival do neocapitalismo selvagem, nesta época de Estados fracos, enfraquecidos ou em processo de enfraquecimento, nesta era das privatizações, de enxugamento das máquinas, de crescimento pequeno da economia mundial, Paris é um imenso canteiro de obras de reformas, feitas pelo Estado.

Na Avenue Winston Churchill, que separa o Grand Palais do Petit Palais, há placas quase tão gigantescas quanto o poder do Estado, informando que a Prefeitura de Paris está reformando o Petit e o Estado está reformando o Grand. O Estado – nenhuma outra palavra. “L’État restaure Le Grand Palais.”

Estão em reforma, com o dinheiro de L’État, além do Petit e do Grand Palais: o museu L’Orangerie, o Arco do Triunfo, a torre esquerda da Notre Dame, a ala esquerda do conjunto do Trocadéro, os vãos da Pont Neuf. Além de uma ou duas estações de metrô de cada uma das 13 linhas mais antigas – a 14ª foi concluída por Mitterrand. Em diversos boulevards, instalam-se faixas exclusivas de ônibus, inclusive na contra-mão – “Paris est un grand chantier”, constatou para nós o Jean-Marie, motorista de táxi negro honesto como São Francisco de Assis.

O poder do Estado, na França, vai atravessando, incólume, os ciclos da história – o absolutismo da monarquia, a grande Revolução, as brigas internas pós-Revolução, o terror, a era napoleônica, a implantação do império, a comuna, a invasão prussiana, a instalação da república, duas guerras mundiais e inclusive a invasão nazista, a Quinta República, o colapso do centralismo estatal comunista, a era do desmanche do Estado.

É o Estado que convoca o povo a invadir as ruas, os monumentos e os prédios públicos, na Nuit Blanche, uma invenção recentíssima, de apenas dois anos. É o Estado que informa aos usuários de ônibus que, por causa de manifestação reivindicatória programada por trabalhadores, haverá atrasos em determinadas linhas, entre tantas e tantas horas. É o Estado que subsidia a agricultura improdutiva – e foda-se o resto do mundo.

Ali ao lado, em dez anos o regime Thatcher esvaziou o inchado Estado britânico, privatizou ferrovias, metrô, minas de carvão, telecomunicações, enquanto seu pupilo canastrão do outro lado do oceano arrasava a assistência pública aos enjeitados pelo sonho americano. O poder do Estado francês se manteve igual, de Pompidou a Miterrand a Chirac.

Chose de lóque.

Pingos nos is: a tal da iniciativa privada

Nada do que está aí acima quer dizer que só existe o Estado. Existe também, é claro, a iniciativa privada. Não há apenas guindastes gigantescos nas obras estatais – constrói-se muito, também, com dinheiro de investidores. E como existem os tais guindastes. É impressionante. Em todos os cantos da cidade.

O melhor exemplo de como o Estado moderno faz a coisa gigantesca e o capital privado vem atrás é, sem dúvida, a Paris Nova, a região de La Défense. La Grande Arche (e põe grande nisso: meu estômago veio na garganta na hora de subir o elevador panorâmico no gigantesco vazio entre o chão e o teto da Grande Arche) foi feito pelo Estado; uma das estruturas verticais é ocupada por ministérios, enquanto a outra é tomada por grandes empresas, para quem seguramente o Estado vendeu ou alugou os espaços. E, na imensa esplanada diante da Grande Arche, o que se vê é o capitalismo do final do século 20, as gigantescas corporações, Citibank, Eléctricité de France, IBM, Apple, as big redes hoteleiras.

E aí me ocorre que o Mitterrand foi assim, mais ou menos, mutatis mutandi, uma espécie de Roosevelt do New Deal: o Estado forte puxa, o privado vem atrás.

Isso me parece muito mais Terceira Via do que a do Blair lambe-botas.

Por falar nisso (1)

E aí, só para enfatizar que as velhas noções de esquerda e direita (inventadas, aliás, na própria França) estão cada vez menos nítidas e mais confusas, basta lembrar como têm sido “esquerdas” as posições do direitista Chirac com relação ao Império Dominante, e como têm sido “direitas” as posições do trabalhista Blair.

E não só com relação ao Império Dominante.

Nossa imprensa não conta, até porque nossa imprensa é uma droga tão gigantesca quanto os monumentos que o Estado construiu em Paris, mas da mesma forma como a França “direitista” tem sido quase condescendente com o turismo jovem e a imigração, a “trabalhista” Inglaterra do Blair tem sido odiosamente discriminatória. Como bem demonstrou o caso dos guardinhas da Alfândega de Heathrow que mandaram de volta brasileiros que não sabiam responder a perguntas sobre os Beatles. E como bem demonstraram os casos contados pela mocinha gaúcha que se sentou ao nosso lado na viagem de volta – vários brasileiros rejeitados nas alfândegas do Império Britânico, sem qualquer explicação plausível, lógica ou admissível. 

Por falar nisso (2)

Saiu há pouco um livro de um estudioso francês sobre as semelhanças e as diferenças entre França e Estados Unidos, sobre o amor e o ódio que os franceses têm pelo país dos Founding Fathers que aprenderam na França as noções básicas sobre a civilização (que, aliás, em seguida rapidamente seriam perdidas). Numa entrevista, o camarada simplificou as coisas da seguinte forma:

Os americanos, descendentes de colonizadores que dizimaram nações indígenas e roubaram-lhes as terras, contam com um dia bom após o outro, com a acumulação. A lógica deles é o e e o e. Os franceses, descendentes de camponeses, sabem que depois de um ano bom pode vir um ano ruim. A lógica deles é o ou e o ou.

Pode ser simplista. Mas é bonitinho.

Deux ou Trois Choses que Je Sais d’Elle

Un:

Sobre o mito de que os franceses não tomam banho e fedem, posso dizer uma coisa: vimos que muitos, mas muitos, mas muitos franceses se overdressem, com perdão pela palavra inexistente. Botam roupa demais.  

Chegamos no início do outono; os primeiros dias foram quentes, os últimos, bem frios. Nos dias quentes, vimos franceses com um bando de casacos desnecessários, enquanto nós, do país tropical, estávamos em mangas de camisa, só carregando na mão algum agasalho para quando o frio da noite ou da sombra chegasse.

Vai daí que eles entram no metrô com blusa de lã e casaco por cima. E haja suor. A condescendente Marynha lembrou que afinal eles estão saindo do verão mais absurdamente quente da história; eu mesmo observei que é mais cômodo entrar no metrô com as roupas quentes e passar um pouco de calor do que ficar tirando e pondo agasalho toda hora.

Mas o fato é que eles se agasalham excessivamente.

Deux:

Sim, é verdade que eles andam com o pão embaixo do braço.

Alguns quebram a baguette ao meio pra entrar no metrô. Mas muitos andam com a baguette inteira, imensa, compriiiida, debaixo do braço.

E, sim, eles comem na rua. Andando, ou sentados nos bancos, eles comem. Seja pão com pão, seja sanduíche. 

Trois:

Eles fazem mais filhos do que seria de se supor pelas estatísticas de crescimento populacional quase zero. Tem criança pacas nas praças e nos jardins – e, como tem praças e jardins demais…

Muitos, mas muitos pais demonstram uma imensa falta de saco pra passear com os filhos.

Há muita francesa de mais de 30 anos tendo filho. E, portanto, muita francesa fazendo tratamento hormonal para ter o primeiro filho. E, portanto, muitos gêmeos. Vimos montes de gêmeos.

Quatre:

Como a capital do Império Britânico, como a capital do Império Dominante, a capital do Império Francês foi invadida pelos colonizados. Paris deve ter mais negros que muita capital africana, mais árabes do que muita cidade da Argélia, Marrocos, Costa do Marfim. Paris é uma Babel. Paris é a vingança dos oprimidos.

Cinq, et ça suffit, et fin:

Paris é uma festa.

Outubro de 2003

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