É dado como certo que os jornais impressos vão morrer. Mais do que isso: é dado como certo que a morte dos jornais tem até dia marcado para acontecer. Há apenas algumas dúvidas sobre a exatidão das datas.
Um certo clima de euforia inconseqüente toma conta de setores da blogosfera que imaginam que está em andamento o processo de tomada do poder pelos “democratizadores” da informação em razão da constante perda de audiência por parte dos grandes jornais.
Os ativistas políticos que postam comentários nos blogs “engajados”, e que formam uma pequena multidão, estão firmemente convencidos de sua missão libertadora. Estão crentes de que, ao diminuir a influência “perniciosa” da grande imprensa, estão preparados para criar uma nova comunidade informativa, livre e democrática, que dará generoso abrigo à sua maneira de ver o mundo – que eles acreditam ser a única séria, correta, honesta e digna de confiança.
A crença pia de que “a notícia está sendo manipulada por grupos poderosos” faz parte do amplo espectro das teorias conspiratórias que compõem um dos traços formadores do caráter do brasileiro médio. O conspiracionismo é uma das peculiaridades desse caráter. Sempre há algo, ou alguém, muito acima do cidadão comum, que conspira, manipula, distorce em benefício de um grupo de poderosos que querem subjugar a grande maioria humilde, submissa e incapaz de discernir. A entidade superior e inalcançável geralmente identificada como “eles” é formada por uma misteriosa e anônima organização de poderosos, que vive em estado de complô permanente, que se opõe e se impõe à maioria oprimida dos coitados – iludidos, enganados e oprimidos.
Percepção empobrecida
É natural que a instituição da imprensa seja alvo desse rancor liberticida, pois ela é vista como parte integrante do establishment ao qual se atribuem todas as mazelas de um mundo imperfeito, onde a renda é mal distribuída, onde os políticos (os do outro partido, claro) são interesseiros e corruptos, e onde o poder econômico é responsável pelo contraste da ostentação da riqueza de uns poucos contra a miséria de muitos.
A demonização daquela que é chamada depreciativamente de “grande mídia” tornou-se um esporte popular na blogosfera.
Mas os demonizadores se esquecem de um detalhe: toda a matéria-prima sobre a qual tecem as suas teorias é produto do trabalho das grandes corporações de mídia, que ainda são as únicas em condições de investir na apuração, organização e edição das informações dos grandes temas que fazem o mundo se mover, tanto na área da política como da economia, das ciências, do entretenimento, do esporte etc.
A pergunta instigante é esta: que fariam os blogueiros comentadores sem ter o que comentar? Que condições têm a maioria – senão a totalidade – deles de apurar e publicar informações acabadas, completas, críveis, influentes? Qual é o nome de um site ou de um blog que não esteja ligado a uma corporação jornalística estabelecida e que tenha originado uma só informação exclusiva e importante que tenha mexido com a ordem das coisas?
Conforme apurou o projeto “Deu no Jornal”, da Transparência Brasil, 92% das matérias sobre corrupção publicadas nos jornais de todo o país têm origem das agências de notícias dos grandes jornais, Folhapress e Agência Estado. Mesmo nos Estados Unidos, onde o site Huffington Post consegue publicar alguma notícia política exclusiva e original, isso só é possível porque eles dispõem de 7 repórteres em tempo integral em Washington, mantidos pela excentricidade de Ariana Huffington, a dona milionária.
Comentei neste Observatório um post do jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto (“O melhor do jornalismo”), onde ele dizia que o possível desaparecimento dos grandes jornais poderia causar um empobrecimento da percepção do mundo. Qual blog atualmente está em condições de revelar um relatório Kruchev, os segredos de Watergate, os papéis do Pentágono ou até mesmo o Fiat Elba de Fernando Collor?
A opinião sobre a razão
Não está dito que a imprensa seja uma instituição imaculada, acima do bem e do mal, e que mereça estar isenta da vigilância da sociedade para a qual deve prestar serviço. Mas o fato é que o media watching, a quem cabe vigiar suas destemperanças, desvios e erros, acaba sendo vítima do mesmo processo de maniqueísmo político do qual ela é acusada, muitas vezes injustamente.
A verdade é que as empresas de comunicação, mesmo as que nasceram no século em que eram instrumentos de ação política ou expressão do idealismo de seus fundadores, hoje são – para o bem ou para o mal, dependendo do ângulo que se olhe – negócios geridos de forma cada vez mais impessoal, submetidos a regras de governança rigorosas, e cuja finalidade última é gerar lucros; o que não apenas é lícito, como também absolutamente necessário para garantir o financiamento de um jornalismo honesto e submetido ao escrutínio do mercado. O certo é que maus e bons jornais sofram o julgamento de seus consumidores, que podem premiá-los com prestígio, respeito e lucros crescentes, ou castigá-los com a irrelevância ou a morte, dependendo da competência e da honestidade com que conduzam seu negócio.
É difícil, portanto, imaginar hoje em dia nebulosos concílios familiares de donos de jornais, reunindo-se na calada da noite para decidir de que forma manipularão a informação para atender seus exclusivos e sórdidos interesses e contrariar sistematicamente os interesses do povo e de seus destemidos, honestos e puros defensores.
Para uma parcela dos detratores dos jornais é bom que eles continuem existindo, não só para que mantenham o fornecimento da informação básica que usam para formar a sua opinião, como para poder criticá-los pelo crime de não compartilhar de suas idéias, idiossincrasias e crenças.
Num comentário colocado neste Observatório da Imprensa, acoplado a um post qualquer, um publicitário sentenciava, com a sabedoria dos auto-suficientes: “Precisar de jornais, não precisamos. Se é para ver fantasias, prefiro ir ao cinema e ao teatro” (…) “a geração dos donos do poder está morrendo. A internet, com todos os seus defeitos e virtudes, está crescendo”. Outro, um advogado, escreveu: “O problema da internet não é que impossibilita o jornalismo. O problema é que permite um contraponto que acaba com o pouco (e ilusório) verniz de credibilidade que a carcaça podre da grande mídia (FSP, Globo, Veja, Estadão) ainda insiste em exibir”.
Nos dois casos (e existem aos milhares na internet), os comentadores não se preocupam com as notícias, com o fato gerador primário, com a informação básica que os jornais lhe fornecem, mas com o julgamento que eles mesmos podem fazer a respeito das notícias – principalmente as que não lhes agradam.
Ainda indispensáveis
Num admirável livro chamado O Cérebro Político (Editora Unianchieta, 388 pp.), o neurologista e psicólogo clínico norte americano Drew Westen, que trabalhou como conselheiro em campanhas presidenciais do Partido Democrata dos EUA, mostra, através de pesquisas científicas desenvolvidas na universidade, com monitoramento neurológico feito por ressonância magnética, como funcionam os circuitos neurais do eleitor.
O córtex pré-frontal, no topo do cérebro, é o que controla as emoções. Em estado de grande excitação, como uma discussão política ou uma eleição, por exemplo, ele produz reações já estabelecidas pela escolha política prévia do seu dono. Confrontado com uma notícia que contraria os interesses de seu partido ou de seu candidato, sua rede de neurônios torna-se ativa, produzindo sofrimento.
“O cérebro registra o conflito entre os dados e o desejo e começa a buscar formas de evitar a emoção desagradável” (…) “Os circuitos neurais encarregados da regulação dos estados emocionais pareceram recrutar crenças que eliminaram o sofrimento e os conflitos experimentados pelos eleitores quando confrontados com realidades desagradáveis. Além disso, tudo pareceu ocorrer com pouca participação dos circuitos neurais normalmente envolvidos no processo de raciocínio”.
A tradução disso, no nosso caso, é muito simples: quando as notícias produzem “sofrimento” à mente de quem tem uma crença política estabelecida, culpa-se o portador das notícias, e não o seu causador. É uma atitude emocional, não tem nada de racional. Por isso a mídia, portadora de más notícias, é vilã, e a internet, onde posso trocar figurinhas com outros jogadores do meu time, é um futuro radioso onde todos pensam como eu, porque eu só convivo e troco idéias com quem tem as mesmas idéias que eu e onde ninguém me contraria.
Outra reação da mente para afastar a sensação de “sofrimento”, explica Drew Westen, é a negação do que se leu. Ou seja: a pessoa lê o que quer, e não o que está escrito. Isso é muito comum nos comentários que se lêem nos blogs da internet. Reação típica também é ignorar a evidência do que se leu. Por isso há muitos reptos desafiadores à “grande mídia” nos blogs da internet. Por exemplo: “Por que não publicam nada sobre a Alstom? E da Yeda Crusius, ninguém fala?” Experimente perguntar ao desafiante: como foi que você ficou sabendo disso? Mas não espere resposta. O córtex cerebral vai procurar outras ligações, e nenhuma delas é com a racionalidade.
Pode ser que o futuro dos jornais tal como os conhecemos hoje não seja uma grande aposta. Mas para as sociedades abertas, pluralistas e democráticas, eles ainda são indispensáveis. Pelo menos enquanto as ferramentas da internet forem usadas preferencialmente para produzir cacofonia ideológica.
(*) Este texto foi publicado no Observatório da Imprensa, em 20/8/2009. Pedi ao Sandro para republicá-lo aqui.
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