Howard Hawks transpirava charme. Ou seja, nunca precisou de transpirar. Nessa noite passeava-se pelo Clover Club e olhava para a pista de dança. Foi então que a viu.
Hawks era casado com a irmã da actriz Norma Shearer, o que fazia dele cunhado de Irving Thalberg, braço-direito de Louis B. Mayer o dono da MGM. Thalberg mandava em tudo. Mão de ferro para todos, uma luva para Hawks que acabara de filmar Bringing up Baby, comédia com um tigre verdadeiro, a leoa que era Katharine Hepburn e a cómica mansidão de Cary Grant. Um sucesso.
A Hawks, ninguém chamaria manso. Os engates dele davam para atapetar o chão do Clover Club, pista de dança e reservados. Numa agenda escarlate guardava nomes loiros e curvilíneos com números de telefone à frente. Hawks era a chave dourada para se entrar nos filmes, essa caverna secreta, aveludada, que a todas atraía.
Hawks olhou para a tão jovem mulher e pensou: “Hmm, que bela fechadura.” Quando a orquestra atacou a música seguinte, já Hawks dançava com ela. Caprichou na valsa, disse duas frases elegantes, fê-la rir – e se ela tinha um riso fácil, desprendido! Hawks meteu a chave: “Não quer entrar nos filmes, fazer um filme comigo?” Um sorriso na boca dela, prometedor, feliz e, logo a seguir, a resposta que atirou Hawks ao chão: “Não, que horror. Não me interessa nada.”
Seguiram-se três anos de muita cama, casamento depois. Ela confessaria com candura: “Não era só bonito, encantador e cheio de sucesso, ele era o pacote inteiro que eu queria: a carreira, a casa, os quatro carros e o iate.”
Na cama ou na sala, Hawks rebaptizou-a. Chamava-lhe Slim. E não houve, depois, filme dele em que ela não entrasse sem pôr os pés em nenhum. Slim inventou as mulheres de Hawks, a Rosalinda Russell de His Girl Friday ou a Barbara Stanwyck de Ball of Fire. Foi Slim que lhe inspirou as frases velozes e acutilantes, a física disponibilidade para as batalhas conjugais, a descarada autonomia e liberdade das mulheres dos seus filmes.
Um dia, Slim descobriu uma sósia, Lauren Bacall, quase tão bonita e ravissante como ela. Ofereceu-a de bandeja a Hawks: maquilhou-a, desenhou-lhe os vestidos, talvez a tenha ensinado a assobiar. Tão igual que a deixou usar o nome, Slim. Assassinando com brilho o livro de Hemingway que adaptava, em To Have and Have Not a relação de Bacall e Bogart era tão decalcada do amor deles, que a personagem de Bogart ficou Steve, como, na sala ou na cama, Slim chamava a Hawks.
Iludido, Hawks quis, vá lá, deitar-se com Bacall, mas o avisado Bogart antecipou-se. Já Hemingway, por graça da esplêndida Slim, teve boas razões para perdoar a forma como mandaram a história de To Have and Have Not às urtigas.
Ninguém como Slim, sem nunca ter entrado num filme, entrou, afinal, em tantos.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Bringing up Baby no Brasil é Levada da Breca. His Girl Friday, Jejum de Amor. Ball of Fire, Bola de Fogo. To Have and Have Not, Uma Aventura na Martinica.
Lady Keith, nascida Mary, renomeada Nancy, apelidada Slim, senhora Hawks, senhora Hayward e finalmente Keith, uma esbelta mulher da alta
sociedade, amada por homens como Howard Hawks, Clark Gable, Ernest Hemingway e o banqueiro Kenneth Keith. Colecionou troféus mais valiosos que as estatuetas da Academia de Artes Cinematográficas.