Na solidão fria do armário

Por maior que seja, o armário é sempre apertado, escuro. Sufoca, oprime, fere de morte. Dentro dele falta o ar que alimenta, a visão do horizonte. Falta espaço pra sorrir, gritar, só não falta para o choro e o ranger de dentes. Viver no armário machuca a gente e quem nos espera de braços abertos lá fora: a vida, o mundo, o amor.

Viver no armário é renunciar à liberdade ao ar livre de preconceitos. É escolher o breu com tanta vida luzindo ao redor. É ser controlado de fora, por outros. É entregar seu destino nas mãos de quem não te conhece e você jamais conheceu. É renunciar à claridade e à esperança, permitir que a vida seja inundada de amargura.

Viver no armário é obediência cega. É acatar a lei dos que desprezam a liberdade, só entendem de escravidão. É perder a fé na amizade, no afeto, na ternura – que não são apenas os ingredientes mais importantes, mas os únicos que realmente importam.

Viver no armário é deixar-se enterrar vivo, muitas vezes na plenitude dos anos quando apenas começamos a sonhar. É obrigar-se a se contorcer numa jaula opressiva, fechar os braços e triturar até reduzir a pó cada fibra, cada célula do seu corpo.

É entregar os pontos, aceitar a derrota antes mesmo de lutar. É abrir uma ferida na alma que ungüento nenhum pode aliviar e um buraco no peito que cimento nenhum é capaz de tapar.

É aceitar o peso de culpas quando a inocência flutua no seu coração, pede passagem, clemência e acena com o perdão.

Viver no armário é deixar a vida para um amanhã que talvez nunca chegue e se chegar pode não ser mais aquele com que você tanto sonhou.

Acostumar-se à reclusão do armário tem cheiro de covardia. Não se acostume com o que te faz infeliz. Dentro de você a liberdade aguarda inquieta desde sempre.

Quem se acostuma ao confinamento do armário transforma amizade em negócio, sexo em pornografia. Proclama a solidão senhora da vida e permite que o medo, a náusea, o horror corroam-lhe as vísceras até que a vida se transforme numa gargalhada perversa de nojo.

O armário não tem limites nem preferências de gênero, credo ou cor. Sempre cabe mais um quando a verdade perde a vez e a falsidade impera.

Impossível viver no armário sem apagar do rosto o sorriso e a pureza das crianças e vestir a armadura do impostor. É fazer da mentira um estilo de vida e expor-se ao pior dos perigos: o de não acreditar em mais nada, ninguém, a começar por você mesmo.

É o lugar onde os tais “pastores” te querem detido e cobram caro para mantê-lo nessa masmorra fétida onde se adota a dieta do fel sem o direito de jamais provar a doçura do mel.

Se é uma condenação auto-imposta – ou mesmo que não seja – não deixe a vida pra depois. Vem pra cá! O mundo te quer e te espera como você é. Arrombe a porta do armário, arrebente amarras e grilhões. Saia pelas ruas e avenidas, pelos campos, abra os braços bem abertos, olhe pro céu, encare o vazio da imensidão e grite para ser ouvido em todo o universo: “Eu sou filho de Deus”!

(*) Marco Lacerda é jornalista e escritor, autor dos livros Favela High-Tech, Clube dos homens bonitos e As flores do jardim da nossa casa. É editor especial do DomTotal

2 Comentários para “Na solidão fria do armário”

  1. Os armários abrigam diversas vergonhas transformadas em preconceitos. As vergonhas permanecem em cada guardado, ao se abrir a porta depara-se com o preconceito.
    Vencida a vergonha infeliz, maior luta será vencer a infelicidade dos preconceituoso, incapazes de sair do armário e se mirar em um espelho e verificar quanto ridicula é sua própria imagem.

  2. O texto descreve perfeitamente a pessoa que sou hj. Eh incrível como essa dura realidade pode mudar toda uma vida construída em cima de alicerces aparentemente sólidos. E a fim de viver aquilo que foi ensinado, morremos aos poucos, abrimos mão da felicidade e pior do que isso somos interrogados o por que de tudo isso sem poder dizer uma palavra. Gostei muito do texto,porem já fui sentenciado: Pro armário.

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