Nos tempos em que eu soletrava entusiasmado a indecidível ratatouille literária que é a prosa do filósofo Gilles Deleuze, apanhei-o a jurar que toda a história da filosofia mais não é do que um interminável conjunto de comentários ao diferencial que são os diálogos de Platão. Terá sido no “Difference et Répetition”?
Ninguém mais do que Jean-Luc Godard amou o cinema americano. Ninguém tão bem o defendeu como a diferença contra a qual todas as cinematografias procuram repetir-se. Ouvi-o mesmo dizer que o cinema é uma arte de rapazes brancos ocidentais. De À Bout de Souffle a Weekend, os filmes do primeiro Godard são, a beijos e a murros no estômago, idiossincráticas repetições à volta do amigo americano. Mesmo antes de filmar, escrevendo nos Cahiers, o seu mítico espírito de contradição raia o sublime quando incensa o sombrio Wrong Man de Hitchcock, quando vê mais Nick Ray do que James Dean em Rebel Without a Cause.
Nos filmes americanos desses remotos anos 50 do século XX, Godard vê “o cinema”. O olhar dele andava a roçar-se pelo espectador chão, popular, que enchia nesse tempo as salas, mesmo que a ele, Godard, o animassem razões antípodas mais ou menos suíças.
Veja-se, por exemplo, a sua primeira longa-metragem, À Bout de Souffle. Conto um episódio e juro que é verdadeiro: nos gloriosos tempos de João Bénard, um jovem estagiário da Cinemateca, com toda a certeza assombrado pelo tema e atmosfera da obra, sem se dar conta do sotaque gaulês (já a miudagem não palrava francês), achou que tinha visto um filme americano e chamou-lhe “About the Shuffle”. O Bogart que mal se disfarça em Jean-Paul Belmondo e a naïvité americana de Jean Seberg dão toda a razão a esse estagiário que – bem-aventurados sejam sempre os puros de espírito! – confiava mais nos sentidos do que em identitária exegese.
Venho para aqui chorar-me? Um bocadinho. Perdoem-me os ais e os uis, mas tenho pena que Godard nunca tenha feito um filme americano. É verdade que Mean Streets e Taxi Driver realizou-os ele por procuração. Com o improvável nome de Robert Altman, foi porventura o auteur de Nashville, ou 3 Women, não fora o desapiedado desmentido de MASH, atribuído ao mesmo imaginário Altman.
Naqueles primeiros 15 minutos de 1980 em que Francis Coppola pensou ser David O. Selznick, chamando europeus como quem chamava Hitchcocks, Godard foi convidado para Hollywood. Escreveu The Story e falou a Robert De Niro e Diane Keaton. Que filme teria sido The Story? Sei apenas que a história saía de De Niro, entrava em Diane Keaton e nascia um bebé. No fim, nuas, a vestirem-se no quarto, uma mãe adverte a filha: “Se não queremos que os homens nos enrabem, temos de apertar com força as nádegas.” Era, entenda-se, um filme político.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Portugal está como ‘Spig’, para tal segue o conselho:“Se não queremos que os homens nos enrabem, temos de apertar com força as nádegas.”
Mas sabe que mais, Miltinho, o filme português, parecendo agora que não, vai-se dar bem. E, no fim, de nádegas apertadinhas. Aquele abraço