O que se passa na sala de cinema devia ficar na sala de cinema.
Maureen O’Hara que o diga. Cansada de passar dos braços de John Wayne para os braços de John Wayne, sentou-se um dia no escuro do Grauman’s Theatre e inundou-a uma doce impertinência. Deslizou pelo homem que estava ao lado, não propriamente pelos braços. O episódio extravasou a sala. Relatou-o o indecente “Confidential Magazine”.
Mas não é de florais indecências que vou falar. Um dia, vi I Vitelloni, de Fellini, preguiçoso estudo do ócio, filme de cinco amigos que não fazem pevide para não sobressaltar o mundo. Depois olhei para as seis da tarde da esquina da minha rua e estavam ali, as mesmas inúteis mãos a coçar os bolsos, boas-vidas, os vitelloni. Eram, éramos nós, os meus amigos e eu, sentados entre a idílica adolescência e a indesejada vida adulta.
Vi muitos filmes sair da sala e andar no meio das ruas de Luanda. Nós os vitelloni conspirávamos contra a barbearia em frente. Ulisses, o empregado, era barbeiro como Chaplin no The Great Dictator, e tinha a cara feia de Totò, barbeiro de Rosselini. De feio, só podia amar a beleza e sei do que falo. Gostávamos dele: era o mais velho, que adorávamos pôr em fúria levantando-lhe o eixo do carro, que deixávamos de rodas no ar.
Ulisses tinha um Austin A 40 Devon de 1952, que tratava com a exacta devoção que lhe merecia a mãe. Uma elegância cromada e preta, por fora cheia de sensuais rondeurs (ó, o anteparo recurvado sobre os pneus!), por dentro uma fantástica aparelhagem de som, num tempo em que não havia aparelhagens de som. Ulisses, o ardiloso Ulisses, montou um arranjo artesanal, pendurando colunas atrás e à frente, tudo ligado a um sistema de luzes que enchia a noite de pirilampos e fogos-fátuos, leds muito antes de se inventarem leds. O Austin A 40 Devon arrancava e era um caga-lumes a atravessar a noite de Luanda.
Ulisses amava as mulheres e seduzia-as a harpa e jogo de luzes. De dia, rapava barbas e cortava cabelos a homens que lhe pareciam polifemos; à noite, os braços abriam-se-lhe para a beleza que só a fulgurante revelação da carne desenha. O Austin de Ulisses era uma barca com sereias dentro.
A sua Ítaca foi a independência de Angola. Ficou. As mãos que tinham acariciado o etéreo volante do Austin agarraram-se a um Scania Super, camião de paz e guerra de motor turbinado. Ao leme desse cavalo de ferro, não houve Tróia que lhe resistisse: pôs o pão, a água, quem sabe uma gota de mel, na boca do povo, mesmo que para isso parecesse submeter-se a Poséidon, senhor de mar e ventos, ou que tivesse de prometer à ninfa Calipso o que antes prometera a Circe, a feiticeira.
Com tipos assim, tipos que nos enchem a rua com as trombetas dos filmes, Chaplins com a honesta e feíssima cara de Totò, é que a vitória é certa.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
As ruas e as noites de Luanda, carregadas de “cagalumes” (nome mais correto para os vagalumes,)merecem um filme para invadir as salas,com roteiro poético do Manuel!
No post anterior, por falha, leia-se MILTINHO em lugar do lúgubre NOSSO MEDO.
Talvez esse meu mítico barbeiro queira escrrvê-lo, quem sabe, Miltinho…