A Europa não é só vanguarda. Também há uma retaguarda europeia. Em crónica anterior, contei os doze passos de Marilyn que revelavam redonda e inignorável parte dela e arrebatavam Tony Curtis, Jack Lemmon e um comboio, em Some Like it Hot. Recebi protestos e uma carta da Comissão Europeia.
Resumo a queixa: do Expressionismo à Nouvelle Vague, na obsessão pela vanguarda, a Europa, quantas vezes de cabeça perdida, soube cantar afinal a nobre retaguarda que só em Marilyn eu teria louvado. Não somos menos do que os americanos, garante Bruxelas.
Faça-se justiça. Em Amarcord, Fellini passeia o vertiginoso olhar por esse trémula abóbada com que o grande arquitecto fechou a perfeita anatomia feminina. Lembro a cena em que, num domingo, alegre e catolicíssimo, as mulheres, uma centena delas, sobem e se sentam nos selins das bicicletas para irreprimível euforia e morbidez dos rapazes, uns adolescentes vadios, sem préstimo, logo esmagados pela generosidade dessa geométrica, cindida, visão.
Falar de Amarcord sem falar de Gradisca é a mesma coisa que ir a Roma e não ver o Papa. Gradisca, súmula do feminino felliniano, é a mulher que dança com a música de Nino Rota e, sequência ou rêverie, despe casaco e vestido vermelhos, deixando só a seda da combinação preta entre as formas, mais romanas do que góticas, e a entrega a um sonhado príncipe. Não está lá nenhum dos adolescentes que nas ruas a perseguem, mas é como se todos lá estivessem.
É Inverno e Gradisca traz em si a chama da Primavera. Os rapazes de Amarcord cercam-na e atiram-lhe bolas de neve. Nesse cenário de pino do Inverno, risos e gritos capazes de desfazer um frio esquimó, vestido branco, rabo oferecido às bolas de neve que lhe acertam, ela exclama, feliz: “Basta, rendo-me!” Espantados guerreiros adolescentes, não sabem, não saberiam, o que fazer à presa.
Terna, trágica, totalmente, o rabo feminino só foi – adulto – olhado e amado por Godard. Em Le Mépris, Brigitte Bardot está deitada, nua, de costas. Michel Piccoli olha-a, a câmara acaricia-a como cinco dedos não a acariciariam, e a música de Delerue funde-se com a intimíssima pergunta: “Achas que as minhas nádegas são belas?” Não, não são. São sublimes.
A América seria um país melhor se tivesse visto esse “cul nu” de Bardot. Mas a América, proteccionista, não vê cinema europeu. Só vendo o que consegue agarrar, contentou-se com o mal entrevisto rabo de Maria Schneider, a branca carne a emergir das jeans, e um torturado Marlon Brando disposto a desvendar segredos de família com a ajuda de um pacote de manteiga. Plano picado, corpos estendidos, o dele a cobrir o dela.
Avisam de Bruxelas: Barack Obama que não se inspire, não é com exemplos destes que se dançam tangos intercontinentais.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
A crônica anterior nâo veio até “50anosdetextos”. Assim esta crônica ficou pela metade. O Manuel ficará sem ver as nédegas da Rita Cadilac, retaguarda do cinema brasileiro.
A crônica anterior está, sim, aqui no 50 Anos de Textos. Tem um link para ela, que repito aqui: https://50anosdetextos.com.br/2013/uma-deliciosa-simetria/
Tem razão “50anosdetextos” abundou. Minhas desculpas ao editor.
Tenho de me encontrar, Miltinho, com essa retaguarda de Cadillac