Rossellini fez Dov’è la libertà, com Totò, o mais popular dos cómicos italianos. Totò é um barbeiro e, com navalha afiadíssima, deveria cortar o pescoço a um cliente porque o tipo, o melhor amigo, mas um mau carácter, tentara abusar da sua mulher, como ela, indignada, lhe confessara.
Para o papel desse amante degolado, Rossellini queria uma cara fresca, um tipo que trouxesse o cheiro acre da rua, uma maldade consuetudinária. Lembrou-se que conhecera o dono de um cabaret mal-afamado. Direi, recorrendo à minha imprestável experiência, que seria um lugar parecido com o Cica, Cica, Boom, referência romana que redespertou o escanzelado lobo lúmpen que jaz em mim.
Rossellini foi ter com esse patrão da noite e convidou-o, explicando-lhe que a coisa metia vingança, por causa duma mulher casada que dormia com outro homem. Cito, ipisi verbis, o culturalíssimo diálogo de Rossellini com esse anjo do vício.
“Diga-me uma coisa – disse o tipo – de certeza que no filme não sou cornudo?”
“Nada disso, antes pelo contrário.”
“Fala a sério?” insistiu o reticente actor.
“Absolutamente, meu amigo, não será cornudo?” jura, e não mente, Rossellini.
“Mas sou o quê, então?”
“Vai ser um filho da puta, um canalha, um bandido, mas não um cornudo.”
“Ah, isso está bem. Aceito.”
Pode gostar-se tanto de um realizador pelas cenas que filmou como pelas que não filmou. Rossellini não filmou esta cena e preferiu que, ao sair da prisão, fosse Totò a conta-la à primeira mulher com que fala depois de vinte e dois anos sem ver nenhuma. Evoca-a no exacto local do crime a que sempre o criminoso volta, agora que a nova malha da cidade já destruiu a barbearia, casa e rua onde morara.
Revoltado com a reclusão, Totò estudara todas as formas de se evadir durante vinte anos. Mas agora, solto, a liberdade abate-se sobre ele como mil duras desgraças saídas da boceta de Pandora. Enquanto esteve preso, a História, veloz, viu triunfar Mussollini, estalar a Guerra, triunfarem os aliados, regressar a democracia. Mas Totò passou ao lado da História e a vida, na nova sociedade, causa-lhe desgosto e angústia.
Totò quer regressar ao aconchego caloroso da cadeia. A impiedade, o crime, a ausência de amor enchem os corações e os dias e ele tem saudades do convívio bondoso e leal com ladrões e homicidas, essas pessoas de bem, amigas, desinteressadas, unidas, a que o ligam vinte anos de cárcere. Descobre que a cadeia é a “casa mia” da canção que, na cena mais pungente de Dov’è la libertà, ele ensina outro preso a cantar. Segue, agora, os planos de fuga que desenhara, mas em sentido inverso, para regressar à prisão, lugar de sonho. Ao olhar humilde de Totò, o valor da liberdade anda francamente sobrevalorizado.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Manuel e suas metáforas de cinema.
A prisao, a mais odiosa instiuiçao da sociedade, nem sempre restringe a liberdade.
Miltinho, as prisões já não são o que eram…