Se o Jimmy Stewart (Scottie) de Vertigo é Orfeu, Orfeu somos todos nós ou é qualquer um. Orfeu amava tanto Eurídice que, desesperado com a morte dela, desceu aos infernos para a resgatar, tocando a sua doce lira. Correu mal, claro.
Scottie, o detective, não desce aos infernos, nem tem lira que se ouça. Tem vertigens e a culpa de ter deixado morrer, por causa das vertigens, um camarada nos telhados de San Francisco. As vertigens são o pretexto para uma armadilha: oferecem-lhe Eurídice numa torre de igreja, nessas alturas em que a visão dele se turva e os músculos lhe desfalecem.
Com perversa candura, Hitchcock explicou ser Vertigo o filme de um homem obcecado por ir para a cama com uma morta. Quando para a sua frente empurram Madeleine, Scottie não sabe ainda que esta falsa Madeleine é Judy. Mas nem é por Madeleine que ele se apaixona. O que o arrebata é o transe em que Madeleine é possuída por Carlotta Valdés, a bisavó cuja campa visita. Em transe, Madeleine simula o suicídio. Quando a retira das águas da baía de San Francisco, a leva para casa, a despe e a mete na cama, o detective leva nos braços Carlotta, a morta que Madeleine incarna.
Vertiginoso e sem lira, Scottie, iludido Orfeu, despiu, terá secado e com desvelo cobriu esta Eurídice, aquela que, como no título do romance francês original, vem dentre os mortos. A perversão de Hitchcock trata tudo isto com uma descarada elipse. Desde que Scottie sai das águas com Madeleine nos braços, nada mais vemos até que, já no apartamento, a câmara nos revela, a secar, o vestido pendurado e a lingerie estendida. Entre os lençóis brilha o ombro nu da loira Kim Novak, Judy a fazer-se passar por uma Madeleine de que a mortíssima Carlotta se apoderou. Há um ombro nu e, nada tendo visto, sabemos que vimos a mais necrófila das elipses.
Ao contrário do que sugere o título português de Vertigo, não há nenhuma mulher que viva duas vezes. A Madeleine a que Judy empresta o corpo é o fantasma de outro fantasma. E quando, à frente da impotência do detective, ela se atira do campanário da missão, a perda que angustia Scottie é a da mulher morta, mística, que em Madeleine se escondia.
Judy, a carnal e vulgar Judy, não viveu como Madeleine porque o fantasma de Carlotta lha roubou. Depois, quando Scottie a descobre na rua, tão parecida com a Madeleine morta, Judy também não vai viver como Judy. O detective, obsessivo, veste-a, calça-a, muda-lhe o cabelo, até a transformar em Madeleine e só a beija quando acredita que nela vai voltar a beijar os lábios da morta que em Madeleine um dia beijou. Madeleine ou Judy, a mulher de Vertigo, sepultada pelo desejo de morte de um cineasta e da sua personagem, não viveu nenhuma vez. Quando um homem quer dormir com uma morta não há nenhuma mulher que viva.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Vertigo se chamou em Portugal A Mulher Que Viveu Duas Vezes, na França Sueurs Froides e no Brasil, é claro, Um Corpo Que Cai.
Excelente esta divagação sobre o clássico de
Hitchcock, assim tão bem escrito é um gosto ler.
Caro José Luis, é muita gentileza sua. Obrigado e um abraço