Hoje, o plano era escrever sobre um certo telefonema e um certo vestido de noiva.
No entanto, atropelada pelo final do horário de verão, adio tudo. Minha amiga, no sul de Minas, há de entender.
Minha briga com o horário de verão vem de longe. Genética.
Meu pai, fazendeiro, trabalhador, acordava de madrugada pra conversar com as vacas, lá ao jeito dele.
Chegavam juntos ao curral, ele e elas. Trocavam leite por ração, se entendiam.
Quando, oito horas, o caminhão da cooperativa chegava, lá estavam as latas. Cheias, fechadas, enfileiradas, tudo pronto. Dever cumprido.
Quando começava o bendito/maldito horário de verão, a lua de mel virava pesadelo.
Fiel, pontual, ele continuava chegando ao curral na hora de sempre, isto é, uma hora mais cedo, mas o governo sempre se esquecia de avisar às vacas. Nem uma. Nem meia. Nem um mísero berro.
Fiéis, impontuais, na hora de sempre, isto é, uma hora mais tarde, lá vinham elas.
Quando o caminhão chegava – pontualmente, isto é, uma hora mais cedo –, só a metade das latas. Correria, desassossego.
— Alguém, no governo, precisava saber que existe vaca no mundo, dizia meu pai, inconformado.
— O senhor tem razão, mas não posso esperar, atrasa o resto do meu dia, dizia o caminhoneiro, explicativo.
— Você não é governo, não tem nada a ver com isso. Você e eu somos governados, as vacas também.
E, depois de breve pausa:
— Eles tinham de avisar às vacas. Não nos avisam?
Seu protesto maior consistia em não mexer no relógio da casa. Grande, bonito, formato de oito, em parede estratégica para ser visto de várias partes da casa, aquela herança de sei lá quantas gerações nunca andou no horário do governo.
— Aqui, quem manda é a natureza, aprendíamos.
Devo ter aprendido muito bem, porque minha briga começa por aí.
Por mais que digam, e preguem, e justifiquem, e esbravejem, não acredito, não concordo, não aceito.
Para meus conceitos genéticos, próximos das vacas, trata-se de um duelo do governo contra a natureza, da mentira contra a verdade, e tenho aprendido, a duras penas, que mentiras não levam a nada. Ou melhor, levam. Ao desencanto, ao desalento. Ao desassossego.
O horário de verão, me dizendo, insistente, o dia inteiro, que aquela hora é uma hora que sei que não é, está simplesmente me enganando. Ou tentando. Um dia, eu consigo, ele deve pensar.
Não consegue, sinto informar. Nunca conseguiu.
Desde o dia em que jornais e tevês avisam que o bendito/maldito está chegando, penso que poderiam me deixar de lado, ignorante, como faziam com as vacas.
Como ainda não tive essa felicidade, começo a sonhar com o aviso contrário, meses depois. Aviso e comemoração. Pois comemoro.
No ultimo sábado, dia sagrado e bendito, acordei pensando que comemoraria tomando uma taça de vinho com meu filho mais novo, hábito familiar.
Se ele não estivesse em casa, tomaria, ainda assim. Meia-noite em ponto.
Início da noite, computador, texto complicado, recebo um torpedo dele. Tempos modernos, distantes das vacas, penso.
O torpedo convida para ir ao Gugu, nome do cearense simpático que recebe, no final da escada íngreme, os freqüentadores do bar Roda Viva, na Vila Madalena.
Cearense simpático há tanto tempo que – o texto do torpedo me mostra –, seu nome se confunde com o da casa.
Ah, penso. Então, à meia-noite em ponto, troco o vinho pela cerveja e, ouvindo Rogério Silva e Biela – “e quero que você venha comigo, todo dia, todo dia”… -, brindo a volta ao horário da natureza. Sem esquecer as vacas.
Noite avançando um pouco, texto ainda complicado, um amigo telefona. Lembra o fim do bendito/maldito, sabe do meu alívio. Digo-lhe que – vinho ou cerveja – vou comemorar.
Noite avançando mais, o Gugu vai pras nuvens. Correrias, imprevistos, não vai dar.
Fiel, pontual, vinte minutos antes da meia-noite no maldito horário do governo, uma hora mais cedo no bendito, da natureza, quase hora do vinho, deixo o computador.
Ninguém mais em casa, silêncio quase absoluto, luz apagada – a da rua chega –, deixo-me ficar no sofá da sala.
Daqui a pouco, ouço o Paulinho e abro o vinho, penso, olhos se fechando na penumbra, corpo se estendendo no espaço, cabeça se ajeitando na almofada, computador sendo esquecido, luz da rua sumindo, lembranças embalando, embaralhando, saudade, sonhos, natureza, latas de leite, vacas, aconchego. Daqui a pouco, nunca mais.
Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma, em 2/2011.
Legal falar do meu amigo Gugu no texto!
Gostaria de convidar você para me assistir no bar Roda Viva sexta-feira.
Abraço!