Tudo, todo dia, o tempo todo

Nove da noite, ruas mal iluminadas, eu vinha – a pé – do trabalho pra casa, ele tocou.

Quase virei a bolsa do avesso, tentando encontrá-lo, em meio a chaves, canetas, óculos, lápis, agendas, tesourinha, fio-dental, carteira, notas de compras, ah!

Meu chaveiro pesado, de cobre – desenho da tragédia de Guernica em alto relevo –, presente de minha amiga Sonia Junqueira, guarda sei lá quantas chaves.

Duas da minha casa – da frente e dos fundos –, duas do escritório, duas da fazenda, duas da casa de minha filha, uma da gaveta de segredos, ah!

Claro, sei, já me disseram, tanta chave em um único chaveiro não faz o menor sentido. Nem o maior.

Mas, acontece que me conheço um pouco. Perco tudo, todo dia, o dia todo.

Daí, facilito minha vida e a de meia dúzia de pessoas, quando procuramos, quase diariamente, um chaveiro grande, pesado, retângulo de cobre.

Na frente, a tragédia, em alto relevo. No verso, a assinatura do Picasso, ao lado da palavra Madrid, me lembrando as andanças da Sonia.

Mais fácil encontrar um chaveiro desses, do que dez ou doze miniaturas anônimas, levinhas, sem assinatura. Nem Guernica.

Claro, sei, também já me disseram, o erro não está no chaveiro, tudo bem com ele, mesmo pesado, mas precisava tanta chave?

Se vou à fazenda três, quatro vezes por ano, e à casa de minha filha de tempos em tempos, pra que tanta?

Acontece que me conheço. Quando tinha um chaveiro pra cada chave, vivia errando. Dando com a cara na porta, meia volta.

Canetas, pra que três, uma bolsa só? Acontece. Na hora de sair, elevador esperando, tento me lembrar da que usei da véspera. Quem garante que não a perdi, na farmácia, na padaria?

Jogo outra bem lá no fundo, garantia. De véspera em véspera, farmácia em farmácia, padaria em padaria, ah!

Óculos, um. Caixas, duas. A pequena, vazia.

Preciso dela nos dias de sol, quando tiro os óculos que nunca tiro. Sem eles, não sei qual de meus filhos abriu a porta do quarto e deu bom dia. Ou boa noite.

Claro, já me disseram, se um dos óculos não sai do meu rosto, pra que duas caixas?

Acontece que a dos óculos de sol, grande, pesada, poderia abrigar a tragédia de Guernica. A outra, miniatura, raquítica, quase não existe.

Quando faz sol, não combina guardar os óculos raquíticos, que não tiro nunca, na caixa grande. Fica uma coisa “muito engraçada, sem teto nem nada“, como na música do Toquinho. Melhor cada qual em sua casa. Com seu tamanho.

Agendas, duas. Pequenas. Uma de telefones, outra de coisas pra fazer, que nunca faço. Só se me lembrasse de consultá-la. Agenda de coisas que deveriam ter sido feitas, quase a mesma coisa. Quase.

Já me disseram pra tirá-la da bolsa, claro. Não tenho a do celular?

Tinha. Trabalhão. Complicado mexer com aquilo tudo. Monótono. Adicionar, colocar número, nome, Leonel, Maria, Nagao, salvar, adicionar de novo, ah!

Naquela noite, ruas mal iluminadas, ele tocou. Bolsa quase do avesso, difícil encontrá-lo, entre Guernicas e agendas. Um de meus filhos queria saber por onde eu andava. Andava na rua.

Guardei-o, fechei a bolsa, tocou de novo. Bolsa do avesso, luta entre Guernicas e caixas de óculos. Outro dos filhos queria saber por onde. Na rua.

Guardei, fechei, tocou. Minha filha queria saber.

Não guardei. Abrir e fechar bolsa em rua mal iluminada, nove da noite, melhor não. Melhor ficar com ele na mão. Mais simples, tranqüilo, sensato. Ajuizado.

Tentei contar a algumas pessoas que não percebi o momento em que ele caiu da minha mão, quando voltava pra casa – a pé –, nove da noite, ruas mal iluminadas. Tentei.

Esta crônica foi publicada no primeiroprograma.

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