A encenação de María de Buenos Aires concebida e dirigida por Kiko Goifman, com oito apresentações no Theatro Municipal de São Paulo em novembro de 2024, é extraordinária, espetacular, maravilhosa, impressionante, emocionante. É um dos espetáculos mais belos que já vi na vida – e, diacho, já vi bastante coisa.
Astor Piazzolla e Horacio Ferrer com toda certeza aplaudiriam de pé por longos minutos a forma com que a “operita”, como o fantástico compositor definia sua obra, foi encenada pela Orquestra Sinfônica Municipal, pelo Coro Lírico Municipal, pelo Balé da Cidade de São Paulo e um grupo admirável de artistas e cantores.
María de Buenos Aires foi criada pelo compositor Piazzolla e pelo poeta Ferrer em 1968, e estreou em 8 de maio na Sala Planeta. Em agosto daquele ano, o mesmo grupo fez a gravação nos Estúdios Ion, no bairro portenho de Balvanera, em seguida lançada em disco – um LP duplo – pelo selo Trova. O próprio maestro Astor Piazzolla tocava o bandoneón, e Horacio Ferrer interpretava o Duende – o narrador da triste, onírica, louca vida de María. E a própria María vinha na voz perfeita, emocionada e emocionante de Amelita Baltar, cedida para o projeto pela Discos CBS.
Foi o início de uma grande amizade, como diz Humphrey Bogart em Casablanca. Uma grande amizade, uma frutífera parceria musical e afetiva que durou muitos anos.
Na encenação criada por Kiko Goifman, estão no palco a orquestra à esquerda, os atores no centro e à direita do palco, onde há uma espécie de segundo cenário, segunda locação – e quatro cinegrafistas!
Em um gigantesco telão que ocupa todo o espaço atrás do palco, o público vê imagens em movimento – abaixo dos letreiros com a tradução em Português do que está sendo cantado ou dito pelos atores. Algo como um filme, presente ao longo de todos os 85 minutos da apresentação.
Tomadas diversas – em preto e branco e antigas – de prédios e ruas de cidade grande. Buenos Aires e também São Paulo, mas sem locais turísticos, sem paisagens que poderiam identificar uma das metrópoles. Tomadas gerais da paisagem urbana, alternando-se com imagens que estão sendo captadas naquele momento pelos cinegrafistas, dos atores em cena! Os atores que estão ali diante de nós, em carne e osso, e também como que refletidos no telão.
Mas refletidos não de forma estática, apenas a reprodução pura e simples dos atores. Estão no telão em diferentes ângulos, e nos ângulos mais diversos que se possam imaginar. E as imagens são exibidas em montagem rápida, mudando constantemente, sem parar, e sempre se intercalando com as tomadas gerais da paisagem urbana.
Multimídia messsssmo. Uma coisa incrível, coisa que eu nunca tinha visto na vida, nem a Mary, nem nossa amiga Cacilda e sua amiga Lili, nem – posso dizer com certeza – ninguém ali no Theatro Municipal lotado. A não ser que houvesse ali gente mais apaixonada que eu por Piazzolla que já tivesse visto outra récita nos dias anteriores…
Coisa de louco, meu!
Fiquei pensando – e falei isso depois com as moças, enquanto saíamos do teatro sonsos, zonzos– que esse espetáculo tinha que ser filmado. Mas filmado como um documentário: uma câmara fixa, paradona, mostrando todo o palco. A reprodução pura e simples, fiel, da beleza que aquele monte de artistas conseguiu criar.
Porque ver aquilo não pode ser o privilégio só de alguns milhares de pessoas que assistiram à encenação no Municipal de São Paulo.
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A rigor, essas oito récitas – nos dias 21 a 24 e de 26 a 29 de novembro de 2024 – são reencenações. Em 2021, essa versão da operita criada por Kiko Goifman havia sido apresentada, marcando exatamente o retorno das apresentações líricas normais no Municipal de São Paulo após os quase dois anos de pandemia da Covid.
A superintendente-geral do Municipal, Andrea Caruso Saturnino, e a diretora executiva da Sustenidos, a entidade gestora do Complexo do Theatro Municipal, Alessandra Costa, escreveram:
“Primeiramente, voltávamos com a programação de ópera na Temporada Liberdades Reinventadas, logo após o período de quase dois anos de suspensão da programação em função da pandemia de Covid-19. O desafio do distanciamento físico se apresentava não somente na possibilidade limitada de ocupação de lugares na plateia, mas também na restrição do número de artistas que podiam estar presentes no palco. Igualmente restritas eram as possibilidades de interação física entre os artistas. Foi assim que esta ‘operita’ com ares transcendentais, originalmente escrita para um pequeno grupo de músicos e solistas e estruturada em pequenos monólogos, mostrou-se como a escolha ideal.
“Em segundo lugar, a montagem apontava para a diretriz do cruzamento de linguagens, trazendo para o Theatro artistas de outras áreas que, pela primeira vez. contribuíam com novas encenações-prática na qual nos aprofundamos nos anos seguintes, demonstrando, com êxito, a importância da inovação no campo operístico. No embalo da profusão de novas técnicas de vídeo utilizadas durante o isolamento social, optamos por convidar para a direção cênica o cineasta Kiko Golfman, que sobrepôs um vasto arquivo de imagens de Buenos Aires e São Paulo a imagens captadas e editadas em tempo real, criando uma encenação baseada na técnica do ‘cinema ao vivo’.
“Por último, buscamos abordar o conteúdo da ópera em estreita ligação com o contexto contemporâneo, tendo a possibilidade de aproximar os universos urbanos de duas das mais vibrantes capitais da América do Sul por meio de suas ‘sombras’.
“Voltar a apresentar essa produção foi, desde então, uma solicitação dos artistas e do público, que atendemos agora não mais com todos os protocolos de distanciamento social de 2021, tendo a possibilidade de comemorar o encontro com a casa cheia.
“María de Buenos Aires é uma ópera-tango.com libreto do escritor uruguaio Horacio Ferrer que narra, numa complexa mistura de música e poesia, a trajetória de vida de Maria – uma prostituta das noites do subúrbio de Buenos Aires. No espetáculo, a Orquestra Sinfónica Municipal, o Coro Lírico, os cantores Catalina Cuervo, Luciana Bueno, Márcio Gomes e o narrador Rodrigo Lopez apresentam-se sob a concepção e direção geral do cineasta Kiko Goifman, com direção musical e regência do maestro Roberto Minczuk e direção de cena de Ronaldo Zero. O elenco conta ainda com a bandoneonista argentina Milagros Caliva. bailarinos do Balé da Cidade de São Paulo e performers convidados.”
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Aqui é obrigatório registrar que Catalina Cuervo e Luciana Bueno se revezaram no papel principal, o papel título. Luciana Bueno, mezzo-soprano brasileira, extensa carreira lírica, interpretou María nas récitas de 22 a 24, e Catalina Cuervo, soprano colombiana, igualmente experiente em palcos internacionais, viveu María nos dias 26 a 29. Foi ela que vimos brilhar com a intensidade de uma Sirius, ou Vega, ou Rigel.
Ao final do espetáculo, Catalina Cuervo, Márcio Gomes, cantor que faz diversos personagens, Rodrigo Lopez, que faz o Duende narrador, o diretor musical Roberto Minczuk, a regente do Coro Lírico Érica Hindrikson, os responsáveis pela direção cênica, direção de vídeo, figurinos, iluminação, e todo o elenco não apenas caminharam pelo corredor central da platéia, entre os espectadores, como em seguida desceram a escadaria esplendorosa do Municipal e andaram pelo hall de entrada, cercados pelos embasbacados felizardos que tiveram a honra de ver aquela maravilha.
Uma prova de que o Complexo Theatro Municipal de São Paulo tem imenso respeito pela operita de Piazzolla e Ferrer, e se orgulha dela, é que, em vez de um simples programa, foi produzido um livro María de Buenos Aires – um caprichadíssimo volume de 170 páginas, ilustrado de maneira farta e bela, com diversos depoimentos sobre o espetáculo – e a íntegra do libreto escrito por Horacio Ferrer, aquele texto de beleza extraordinária, chocante, absurda, traduzido para o Português por Alexandre Agabiti Fernandez.
Um luxo.
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Um luxo, assim como o LP duplo original, que comprei em Buenos Aires na primeira visita à cidade, no início de 1973, juntamente com dezenas de outros discos do compositor, maestro e bandoneonista.
Na época da pandemia, escrevi que houve um tempo, ali pela primeira metade dos anos 1970 – o Brasil mergulhado no pior momento da ditadura militar, a Argentina ainda em um de seus períodos democráticos pré novo golpe de 1976 – em que Astor Piazzolla parecia arroz de festa aqui. Houve um mês em que vi Astor Piazzolla e Amelita Baltar no Theatro Municipal e no Bosque da Biologia da USP!
Por isso, por ser admirador de velha data do grande músico, me surpreendi demais ao saber que houve uma encenação de María de Buenos Aires em São Paulo em 2021. E foi por culpa exclusiva minha, porque – Mary verificou na internet – os jornais falaram da encenação. Li mal os jornais naquela época.
Desta vez agora, no entanto, tanto O Estado de S. Paulo quanto a Folha de S. Paulo, assim como o carioca O Globo, ignoraram solenemente as oito réplicas no Municipal. O que é incrível, um absurdo, uma loucura – uma prova a mais de como anda preguiçosa, pobre, ruim a imprensa. Meu, uma realização desse porte, envolvendo o teatro, a Sinfônica Municipal, o Balé da Cidade de São Paulo – e nada nos jornais! No primeiro dos oito dias, houve, pela primeira vez na história da maior cidade do país, uma transmissão de récita de espetáculo lírico em telão voltado para a rua, a Conselheiro Crispiniano – e nada nos jornais!
Agora, de novo, eu não sabia que María de Buenos Aires estava sendo encenada em São Paulo. Mary e eu fomos salvos por nossa amiga Cacilda – que, faltando três horas para o início do espetáculo da terça-feira, 26, nos ligou perguntando se topávamos comprar os convites de dois amigos que, por motivo de força maior, não poderiam ir. Temos que agradecer a Cacilda sempre, sempre, sempre.
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Um último registro. Por uma dessas fantásticas coincidências de que a vida e a ficção são cheias, María de Buenos Aires foi encenada em Porto Alegre, no também majestoso Theatro São Pedro, nos dias 15, 16 e 17 de novembro. Nada a ver com a encenação criada por Kiko Goifman para o Municipal de São Paulo. Apenas uma coincidência de terem havido duas encenações diferentes da obra no Brasil no mesmo mês.
Lá, os gaúchos viram um espetáculo com direção e concepção de Carlos Rodriguez, com a Orquestra da Ulbra (Universidade Luterana do Brasil), com regência de Tiago Flores.
Foi a primeira vez que a operita de Piazzolla e Ferrer foi encenada em Porto Alegre, aquela cidade encantadora que fica mais perto de Buenos Aires que de São Paulo. (Eu quase disse “do Brasil”, mas não cabe piadinha aqui. Este texto é sério, pô!)
Porto Alegre juntou-se, assim, ao rol das cidades que já tiveram o privilégio de ver María de Buenos Aires – depois de Buenos Aires, São Paulo, Miami, Atlanta, Cincinatti, Syracuse…
Não tenho a relação completa das cidades em que María de Buenos Aires foi encenada. Só citei essas quatro norte-americanas aí porque nelas quem interpretou María foi a fantástica colombiana Catalina Cuervo que nós vimos de pertinho. Segundo o site especializado Schmopera, “conhecida como a ‘Soprano Ardente’, a colombiana Catalina Cuervo tem a distinção de ter sido a intérprete do maior número de produções de Maria de Buenos Aires dee Piazzolla na história mundial da ópera”, em cerca de 15 diferentes produções.
Já os jornais paulistas…
27 e 28/11/2024