A vida nas alturas

O que dizer de um porto-alegrense que não se molhou na enchente? Sortudo? Esperto? Nada! Tão desafortunado e desinteligente como os demais. A única diferença é que esse porto-alegrense que escapou da inundação, como eu, é que ele não mora nas várzeas, mas nos morros altos da cidade. 

Porto Alegre e centenas de outras cidades do estado foram construídas justamente onde nunca deveriam ser erguidas sob hipótese alguma. Está tudo errado, mas não havia ninguém, 252 anos atrás, para dizer ei pessoal, aí não pode, aí enche!

A capital dos pampas não tem pampas, tem é várzeas e morros pra dedéu, alguns bem elevados, como o Alto Petrópolis, onde moro. Fica, se o trânsito ajudar, a uns 20 minutos do centro e a seguros 100 metros acima do Guaíba. 

Os moradores do Alto são melhores que os outros? Nem um pouco, mas têm mais dinheiro no bolso. A renda média nesse bairro chega aos R$ 10/15 mil  por mês. Aqui e nos bairros ao redor reside a nata endinheirada de Porto Alegre. 

Mas não é preciso subir a essas alturas para escapar das enchentes. No centro histórico da cidade, bem no meio, há uma elevação que eu calculo de uns 50 metros, onde os portugueses construíram a igreja matriz, o fórum, a Assembléia Legislativa e o palácio do governo (tudo demolido depois e substituído, no século 19, por novas e amplas construções para os mesmos fins). 

A essa elevação deram o nome de Praça da Matriz, depois renomeada para Praça Marechal Deodoro, mas ninguém a conhece por esse nome. Ao redor dela fica o bairro residencial mais antigo da cidade, ao longo das ruas Duque de Caxias e Riachuelo. 

Construíram lá em cima, ainda, o Theatro São Pedro, uma relíquia da cidade projetado bem antes da Revolução Farroupilha e inaugurado bem depois, em 1858 (a revolução foi de 1835 a 1845). O Auditório Araújo Viana, que depois mudou de lugar, ficava ao lado e ali se tocava e ouvia música ao ar livre, com o público sentado em bancos de pedra sob pergolados cobertos de falsas vinhas. A Biblioteca pública foi construída logo atrás do teatro. 

Eram cultos e inteligentes os portugueses e seus primeiros sucessores. E o recado estava dado. A cidade tinha que ser nos cumes. 

Embaixo ficava a vasta várzea alagável do Guaíba, que se estende por dezenas de quilômetros quadrados, até quase o pé da Serra Geral. E nela foram plantadas cidades importantes e populosas, como Canoas, São Leopoldo, Novo Hamburgo, Gravataí, Alvorada, Cachoeirinha e outras menores, como Guaíba, Esteio, Sapiranga, Estância Velha etc. 

Toda essa extensão, onde vivem 2,5 milhões de pessoas (a capital tem 1,3 milhão desse total), é uma sucessão de várzeas — do Guaíba, do Gravataí, do Rio dos Sinos, do Taquari, do Caí e outros rios menores. O Brasil e o mundo conheceram esses nomes nos últimos 40 dias, mas aposto um banho no Guaíba como não foram informados de que construir nessas várzeas é correr o risco de um dia ficar com a água pelo pescoço, ou mais. 

O aeroporto internacional Salgado Filho repousa solene no meio da grande várzea do bairro Humaitá, onde também construíram a Arena do imortal tricolor. O aeroporto e o estádio ficaram embaixo d’água e ainda estão alagados. Mas não só os gremistas se lamentam. Os colorados também, embora o Estádio Beira Rio fique no extremo oposto ao do Grêmio, só que, como diz seu nome, é na beira do rio! Claro que ficou embaixo d’água também. 

Estavam errados os portugueses? 

De jeito nem maneira. Errados estavam seus sucessores no século 20. Porto Alegre deveria ocupar os altos, enquanto as terras baixas seriam cobertas com parques e jardins, clubes, hortas, plantações. Esse era o plano de nossos ancestrais quando fundaram a Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais, em 1772. A capital dos pampas estaria entre as mais belas do mundo, se o sonho tivesse saído do papel como sonhavam seus fundadores.  

Daqui de Petrópolis contemplam-se as várzeas. Sinto-me nas alturas. Mas nesta enchente, o que sentimos aqui em cima foi a alta desbragada dos preços. Um chuchu pulou de R$ 2 para R$ 4, uma cenoura foi a R$ 6, uma berinjela a R$ 8, uma cabeça de alface a R$ 10! E logo sumiram das prateleiras, não só pelas chuvas torrenciais, mas porque, de tão caras, as vendas despencaram e os comerciantes nem ofereciam mais. 

Faltou água também aqui nos altos, assim como por toda a cidade. Descobriu-se que Porto Alegre não tem bombas de sucção que funcionem debaixo d’água nas estações de bombeamento, instaladas para jogar a água da chuva no rio e as águas do próprio rio de volta para ele, quando transbordasse. Quer dizer, até funcionariam, mas a instalação elétrica para acioná-las não é à prova d’água. Resultado: as bombas foram desligadas para não ocorrerem curtos circuitos e descargas elétricas que matariam quem estivesse dentro d’água. E centenas de pessoas andavam pelos bairros com água pela cintura. 

E faltou luz também, aqui no alto e na cidade inteira, por dias e dias. O Centro ficou às escuras por semanas. Eldorado do Sul, do outro lado do Guaíba, em frente a Porto Alegre, ficou embaixo d’água e sem luz durante semanas também. A cidade toda, aliás, vai ter que se mudar para outro lugar e o prefeito já iniciou os estudos para fazer a mudança. 

Agora, imaginem onde pensaram em construir o novo aeroporto internacional de Porto Alegre, antes de fazerem um novo terminal de carga e passageiros no antigo? Em Eldorado do Sul, ora! Felizmente, São Pedro entrou em ação: ali não, pessoal! E mandou para baixo uma chuva histórica que alagou quase tudo no fim da década de 90, menos o velho aeroporto. 

Sem água e sem luz, senti-me solidário com os desabrigados. Aprendi que não só o churrasco nos une. A carência também. Uma igreja luterana da minha rua abriga 130 pessoas no espaço que antes era dos cultos e orações. Estão lá até hoje. Perderam tudo, fugiram da enchente só com a vida e a roupa do corpo. 

Outra mudança que todos daqui sentimos foram os helicópteros militares zunindo nos nossos ouvidos dia e noite. Só de uns dias para cá não ouço mais seus motores batendo as pás sobre as nossas cabeças. Pegavam desabrigados levados de barco das ilhas para o bairro do Cristal, às margens do Guaíba, na zona sul, e os transportavam para escolas, igrejas, clubes, universidades nas zonas altas. Gente, roupas, cobertores, comida, remédios — sem os helicópteros o socorro seria um esforço vão. 

O que está por vir é um desafio ainda maior do que salvar a própria vida. É a reconstrução. Reconstruir casas, bairros, parques, cidades. Dessa vez em locais seguros, porque o novo normal climático no Rio Grande é de ciclones, dilúvios e enchentes. 

Hoje peguei um teletáxi (sistema que deveria ser adotado em todo o país!) e a primeira conversa do motorista foi sobre sua apreensão com as chuvas que estão “programadas” para este fimdi (como dizem aqui) e por toda a semana que vem. O rádio do carro estava ligado, mas não tocava música sertaneja, como no resto do país. O que tocava no rádio era uma entrevista com um meteorologista professor da UFRGS. 

O grande assunto, nas terras altas e nas terras baixas, é a meteorologia. Há montanhas de lixo e destroços com dois/três metros de altura nos bairros da várzea, formadas nos últimos dias por retroescavadeiras que depois carregam tudo para os caminhões de limpeza. Chuvas fortes podem espalhar tudo de novo pelas ruas. 

O medo de perder o que restou de suas casas nessas regiões faz do porto-alegrense um povo traumatizado, que olha para os céus em busca de sinais de tempo bom ou de tempo ruim. 

No rádio do teletáxi, o meteorologista profetizava que esta  será outra chuva forte, o Guaíba vai subir de novo, mas não vai chegar a transbordar. O motorista e eu respiramos fundo, aliviados. Mas eu, pelo menos, pensei que se os ventos soprarem fortes do sul o Guaíba pode represar e se esparramar outra vez pelas várzeas. 

O motorista comentou que há muitos anos não fazem mais dragagens no Guaíba e isso diminuiu o calado do rio. Em consequência, cabe menos água dentro dele e o excedente vem para cima de nós. Os gaúchos também estão ficando entendidos em hidrologia. 

Nisso, o teletáxi chegou ao meu destino, paguei a corrida com um Pix e nos despedimos desejando boa sorte e pouca chuva para todos. A esperança é sempre a última que morre. 

 Este Rio Grande, já devastado pela agricultura predatória, está conhecendo na pele o verdadeiro significado do seu nome. Cheio de rios que em certas épocas descem aos borbotões da Serra Geral, sem mais as florestas e matas ciliares de antes para segurar a torrente. 

Alheio ou avesso aos conhecimentos do passado e da ciência, um vereador de Caxias do Sul propôs há alguns dias que as autoridades cortem as matas, deixando árvores a no mínimo 5 metros uma da outra! 

A justificativa do tresloucado é que árvores são muito pesadas, não se firmam bem no chão, e destroem tudo quando levadas encosta abaixo pela enxurrada. Assim, concluiu no seu inacreditável discurso, com menos árvores no caminho a água correria livre até o rio, sem causar nenhuma destruição! 

Não sei exatamente qual palavra usar para denominar o que tem dentro da cabeça um sujeito desses, levado à vereança pelo voto popular. Merda é pouco. 

E em mais alguns meses, estiagens e secas severas nos esperam — me dizem aqui na orelha as previsões para La Niña, que já se avizinha…

Nelson Merlin é jornalista aposentado e ilhado no Sul brasileiro. 

15/6/2024

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