Lula, o mito

As derrotas acachapantes de Lula no Congresso Nacional na última terça-feira têm sido atribuídas a falhas dos articuladores do governo, sejam eles ministros ou líderes formais na Câmara e no Senado. A justificativa simplista isenta o presidente, que vem tropeçando feio no fazer política, arte na qual é tido como craque – talvez apenas um mito ancorado na verve que tinha para encantar as massas. Neste terceiro mandato, ele assegurou reiteradas vezes que entraria em campo. E nada. Confirma assim o histórico de que sua interlocução política sempre se deu por terceiros. Mais: se colhe acerto, ele se adorna com os louros. Quando não, outros pagam a conta.

Apelidado pelo próprio Lula como capitão do time, o ex-deputado e ex-ministro José Dirceu foi quem segurou a primeira onda. E acabou na cadeia. Preferia ter fechado um acordo eleitoral com o PMDB, maior, menos disperso e, portanto, mais fácil de negociar. Mas teve de lidar no varejo com um bando de deputados de várias siglas pequenas, com interesses diversos, que, em comum, só tinham a gana pelo dinheiro do governo. Veio o mensalão e as maiorias congressuais confortáveis. Mas Lula, uau!, de nada sabia.

Dirceu, que nega a existência provada e comprovada dos pagamentos mensais, “reconhece” que à época o PT errou. Admitiu com naturalidade que o partido financiou caixa dois a torto e a direito – “o PT tem de se desculpar por isso”, dizia em 2005 -, crime que ele continua considerando menor. Com Dirceu fora do jogo e outros tantos líderes petistas investigados, Lula também achou por bem pedir desculpas. De público, reiterou que desconhecia os ilícitos, embora fosse ele o principal beneficiário.

Jogo jogado, Lula ampliou os poderes do então ministro da Fazenda Antônio Palocci, até ele ser flagrado no caso da quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo no escândalo que ficou conhecido como “Casa do lobby”. A ex Dilma Rousseff, ungida ministra da Casa Civil, assumiu a preferência de Lula para a sua sucessão, em uma história de que o país conhece o desfecho: vitória eleitoral, desvios da Petrobras que deram origem à operação Lava Jato, gastos a rodo e impeachment.

Lula é um animal político? Sim. Mas só no palanque. No Lula 3 tem mostrado impaciência e até desdém pela lida cotidiana. Prefere viajar.

À exceção do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o único a colher vitórias, os ministros das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, e da Casa Civil, Rui Costa, auxiliares diretos do presidente para a tarefa de interlocução com o Parlamento, estão quase nocauteados de tanta pancada. Os líderes do governo no Congresso pouco ou nada conseguem e os partidos ditos aliados com assento nos ministérios emplacam e comemoram gols contra.

Assim como na quadrilha junina do “é verdade, é mentira”, a cada derrota a cantilena se repete: agora, Lula vai entrar em campo e virar o jogo. E ele não vai. E se vai, não vira o jogo.

Foi assim no início de 2023, quando o Congresso rejeitou parte da nova estrutura administrativa do governo recém-eleito. Em nova crise poucos meses depois, em junho, o presidente da Câmara Arthur Lira anunciava, após um encontro com Lula, que a relação com a Câmara estava pacificada e que o petista iria cuidar, pessoalmente, da interlocução com os líderes partidários.  No convescote palaciano do final do ano, a entrada do presidente em campo era aconselhada e comemorada. Mas não veio.

Em abril, depois de nova derrota e de Lira acusar Padilha de incompetente, Lula soltou os cachorros sobre seus ministros, exortando-os para que atuassem ativamente na articulação. E, mais uma vez, garantiu que estaria à frente do processo. E nada. Na última quarta-feira, um dia após a surra do Congresso, Lula propôs a reedição do núcleo político, comandado pessoalmente por ele, com a participação de líderes do governo e dos partidos que o apoiam. A primeira reunião ampliada, se o calendário junino permitir, deve ocorrer no dia 10. A ver.

Ninguém duvida de que Lula é capaz de lidar com adversidades, até com as mais extremas. Vide o período em que ficou preso. Mas terá de entregar mais do que resiliência.

Para começar, deveria ter claro em quais brigas entrar para ganhar em um Parlamento precificado como conservador. Não que deva refluir em questões de princípios, como a da saidinhas de presos para visitas a familiares. Nelas, e em outras pautas de segurança (incluindo armas) e comportamentais, em vez de criar frentes de batalha em uma seara de derrota anunciada, governistas deveriam usar a tribuna do Congresso e todos os meios de comunicação disponíveis para pregar, de forma didática, os motivos das discordâncias. Podem perder do mesmo jeito, mas com alguma dignidade.

Isso só será possível se os olhos do petista não estiverem voltados apenas para a sua popularidade, que declina. Alguém precisa sair da bolha e dizer a Lula que a busca frenética por aprovação imediata compromete o futuro. Não só dele, mas de todos os brasileiros.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 2/6/2024. 

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