No primeiro governo Lula o quadro já era esquizofrênico. Quem mais se opunha à política econômica do ministro Antonio Palocci e do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, eram senadores e deputados do partido do presidente, o Partido dos Trabalhadores. Enquanto isso, a oposição a defendia porque as medidas do então ministro da Fazenda iam na direção correta: superávit primário, meta da inflação, responsabilidade fiscal.
O mesmo paradoxo, e com maior gravidade, aconteceu em 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff. Nomeado ministro da Fazenda com a missão de estancar a sangria das contas públicas com medidas de austeridade fiscal, Joaquim Levy viu sua política econômica torpedeada pelo partido da presidente – e com seu aval. O coração de Dilma sempre foi expansionista, desde os tempos de sua famosa frase “gasto é vida”.
O filme volta a se repetir agora, com Fernando Haddad fazendo o papel de Levy/Palocci e Gleisi Hoffman, o de Dilma. Imaginava-se a meta para 2024 de déficit fiscal zero como pacificada desde a decisão de Lula de mantê-la no orçamento encaminhado ao Congresso. Ledo engano. O próprio PT encarregou-se de torpedeá-la ao aprovar na sua Conferência Eleitoral, realizada no último fim de semana, documento no qual além de protestar contra a “ditadura do Banco Central Independente” vociferou contra o “austericídio fiscal”. Leia-se, a meta estabelecida por Haddad no arcabouço fiscal aprovado no Congresso Nacional, de forma quase unânime.
A divergência entre o ministro da Fazenda e seu partido ficou escancarada no debate realizado na Conferência, quando Gleisi defendeu para o próximo ano “um déficit de 1% a 2%”. Segundo ela, se isso não acontecer e a economia patinar, a popularidade de Lula pode cair.
Na liturgia petista a ideia de que gastos geram crescimento econômico é um dogma e o próprio Lula pensa assim. Daí suas afirmações segundo as quais “não cortará investimentos”. A visão de Gleisi está respaldada pelo pensamento do presidente. São suas as palavras de que nada tem demais em um “déficit 0,25 ou 0,5%”, em 2024.
Lula mantém a meta estabelecida por Haddad, mas em março pode implodi-la se a arrecadação da União frustrar as expectativas da equipe econômica. Gleisi não atiraria publicamente contra o déficit zero sem dar conhecimento prévio a Lula. No mínimo recebeu o “nada a opor” do presidente, de quem é da mais absoluta confiança.
Para o PT, responsabilidade fiscal, superávit primário e meta inflacionária são políticas de direita, enquanto o expansionismo fiscal é indutor do crescimento econômico, portanto uma política de esquerda. Essa ideia foi desconstruída no próprio debate, por Haddad, lembrando que nos últimos dez anos o Brasil teve um déficit fiscal de R$ 1,7 trilhão e a economia não cresceu. Mordaz, lembrou os “anos dourados” dos primeiros governos Lula, quando houve superávit primário de 2% e a economia cresceu, em média, 4% ao ano.
Haddad tem razão. Se houvesse uma correlação entre gastança e crescimento econômico a Argentina não estaria na situação em que se encontra. E o Brasil teria, na última década, um crescimento capaz de fazer inveja aos chineses. O inverso é verdadeiro. A expansão fiscal sem lastro é inibidora do crescimento, quando não gera brutal recessão.
Foi assim no segundo governo Dilma, quando tivemos a combinação perversa de recessão, aumento da inflação, juros altos, endividamento público e desemprego. Nos anos 2015 e 2016 o rombo fiscal foi de 1,9% e 2,5%, os dois maiores déficits primários desde os tempos de Collor, excetuando-se o de 2020, devido à pandemia. A gastança de Dilma não gerou crescimento. Gerou uma recessão acumulada de 7% do PIB. Tudo isso penalizando os mais pobres, a quem uma política econômica, que se julga de esquerda, deveria beneficiar.
O arcabouço fiscal persegue o equilíbrio das contas públicas pela expansão da receita. Há dúvidas pertinentes se as expectativas de receitas não serão frustradas, mas é inegável o mérito do arcabouço de perseguir metas, inclusive de superávit primário. Por essa razão, teve apoio quase consensual no Parlamento, entre economistas e do próprio mercado – essa entidade demonizada por petistas.
Não é preciso recorrer a Freud para entender a esquizofrenia do PT de chamar de “austericídio fiscal” a política de um dos expoentes de suas fileiras e do governo Lula. Há explicações mais comezinhas para a insanidade de atirar contra o próprio patrimônio. Em um ato de sincericídio a toda prova, o líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE) foi cristalino: “Se tiver que fazer déficit, vamos ter de fazer. Senão a gente não ganha a eleição em 2024”. Simples assim.
A presidente do PT vai na mesma linha: “Não podemos nos guiar por uma política de austeridade fiscal que vá contra a gente”. Articula-se, portanto, populismo eleitoral não muito diferente do praticado pelo ex Jair Bolsonaro, quando expandiu os gastos públicos no último ano de seu governo para tentar se reeleger. Dilma fez escola. É de sua lavra a frase “podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. Com a virada do ano essa hora entra na ordem do dia.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 13/12/2023.