“Abracemo-nos para marcharmos, não peito a peito, mas ombro a ombro, em defesa da Pátria, que é a nossa mãe comum.” A frase é de Caxias, o pacificador, quando brasileiros guerreavam entre si na Revolução Farroupilha. A idéia da mãe comum de todos nós – brancos, pretos, indígenas, mestiços, nordestinos, sulistas – deve ser resgatada diante das palavras do governador de Minas Gerais, Romeu Zema, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo.
Perigosamente, o governador incentivou uma nova divisão em um país já suficientemente polarizado. Não bastassem os conflitos esquerda/direita, nós contra eles, de valores e costumes, Zema introduziu a divisão entre regiões. Segundo ele, o consórcio Sul/Sudeste foi criado para se contrapor ao Nordeste.
Em artigo intitulado “El Brasil que precisamos”, o ex-presidente do Uruguai, Júlio Maria Sanguinetti, destaca o fato do Brasil ter mantido sua unidade territorial quando se tornou independente. Para ele, trata-se de um grande ativo ser um “monster country”. Ou seja, com vocação a ser um importante protagonista regional e mundial. Caminho bem diferente seguiram as antigas colônias espanholas do nosso continente, pulverizadas em vários países.
Devemos ao Império a nossa unidade territorial e linguística. Os levantes separatistas desse período não lograram êxito. Alguns foram equacionados pela via da pacificação na qual se agigantou a figura de Caxias. Outros, duramente reprimidos. De qualquer forma, não tivemos, entre nós, uma guerra civil nacional, como os Estados Unidos enfrentaram quando da Guerra da Secessão.
Mais: consolidamos nossa configuração territorial pela via da negociação. Foi assim com Alexandre de Gusmão, idealizador do Tratado de Madri de 1750, que revogou o Tratado de Tordesilhas, mas também com o Barão de Rio Branco, na consolidação e ampliação de nossas fronteiras.
Somos uma só nação, mas também um povo uno, indivisível. Não nos dividimos entre “sulistas” e “nordestinos”. Somos um povo ímpar, enquadrado por Darcy Ribeiro na categoria de povos novos, como resultado da “desindianização dos indígenas, desafricanização dos negros e deseuropeização dos portugueses”.
Talvez Romeu Zema não tenha se dado conta, mas sua entrevista vai contra os alicerces da nossa formação como nação – e como povo -, na qual a miscigenação e a mestiçagem nos deram identidade étnica, para usar mais uma das definições de Darcy. Em vez de acentuar o que nos une por meio de uma comunhão no destino, o governador mineiro trilha o caminho do dissenso, introduzindo o perigoso vírus do separatismo. O que julgávamos desaparecido desde o fim da primeira metade do século 19.
O pacto federativo estabelecido pela Constituição de 1988 não pode ser revogado por pressão dessa ou daquela região, desse ou daquele estado, como pretende o governador. Ao se queixar que os estados do Sul e do Sudeste não recebem de volta a mesma proporção que contribuem em termos de impostos e tributos, o governador mineiro sinaliza a perda da noção do caráter da União, responsável pelo equilíbrio e o enfrentamento das desigualdades regionais e sociais.
Na visão do governador somos dois Brasil: o que trabalha, leia-se o Sul e o Sudeste, e o que não trabalha, com o primeiro sustentando o segundo. Aliás ele já afirmou isso com todas as letras. Esse é o sentido de sua comparação do Nordeste com “vaquinhas que produzem pouco”. É possível encontrar elos de ligação entre a afirmação de Zema com o pensamento de Oliveira Vianna, segundo o qual a modernização do país se daria partir de uma elite constituída por sua população meridional e os militares.
Oliveira Viana tinha uma visão negativa da população das demais regiões. Antiliberal e defensor da centralização estatal, foi, nos anos 20/30, o grande sistematizador do pensamento autoritário no Brasil, dando as bases teóricas para a implantação do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Romeu Zema confronta a história de Minas Gerais, um estado síntese do que é o Brasil. Minas é Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste. Tanto é assim que, desde o advento da Nova República, quem se elegeu presidente da República sempre foi o candidato mais votado em Minas.
Zema está longe de Juscelino Kubitschek, político mineiro que puxou o país para o Planalto Central, com a construção de Brasília. Em seu governo foi criada a Sudene, como ferramenta para enfrentar a desigualdade regional.
Tampouco o atual governador de Minas tem a estatura de um Tancredo Neves, que nos conduziu para fazer a travessia da ditadura militar para a democracia. Naquele momento da nossa história e ao ser eleito, Tancredo fez um grande apelo aos brasileiros: “Não vamos nos dispersar!”
Romeu Zema faz o oposto, propõe a dispersão do país e dos brasileiros. Dá, assim, uma enorme contribuição para a perpetuação de uma polarização sem fim. Talvez com o objetivo de ser o candidato de uma extrema-direita rancorosa, que tem o Nordeste como uma espinha na garganta.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 9/8/2023.