Eleitores das 581 cidades turcas vão às urnas neste domingo em uma das mais acirradas disputas presidenciais já vistas naquele país. Levemente à frente nas pesquisas, Kemal Kilicdaroglu, candidato que aglutinou cinco partidos oposicionistas, ameaça o atual mandatário Recep Tayyip Erdogan, no poder há 20 anos. Além de mudar a história da Turquia, sua eventual vitória pode significar uma lufada de democracia em um mundo cada vez mais dominado por líderes autocratas.
Erdogan é um dos expoentes da direita populista que se expandiu nas últimas décadas, com o discurso barato de “país grande” e na rasa pauta de costumes pró-família (seja lá o que isso quer dizer) e anti-LGBT. Está no time do russo Vladimir Putin, de Viktor Orbán e Benjamin Netanyahu, primeiros-ministros da Hungria e de Israel, dos ex-presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro. Derrotá-lo, portanto, será como colocar um freio de arrumação nos giros que a Terra tem feito para trás.
Impedir o avanço da direita extremada faria um bem danado à democracia. Mas não a livraria dos ditadores e autocratas de esquerda perpetuados em regimes tão ou mais desumanos. Encaixam-se aqui países como Cuba, Venezuela, Nicarágua, todos dirigidos por líderes queridos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
De direita ou de esquerda, autocratas apoiam-se em práticas semelhantes. Buscam controle do Legislativo e do Judiciário, da mídia. São incansáveis na repressão a opositores, com prisões arbitrárias e julgamentos fictícios, penas de perder a conta, paredão e morte.
Têm ainda uma bula comum para alcançar e se manter no poder. Nutrem a percepção do mundo binário, dividido entre Deus e diabo, bons versus maus, nós versus eles; inventam todo tipo de acusações contra adversário, tratado sempre como inimigo. São os salvadores da pátria.
E se aprimoraram nas táticas fascistas. O que antes se fazia com golpe militar, tanques e fuzis – essa coisa demodê que só a turma de Bolsonaro, fã do coronel Ustra, ainda acreditava ser possível – agora se dá com ares de legalidade. Constroem narrativas que forjam a História e impõem mudanças constitucionais aprovadas em plebiscitos por populações ignorantes ou temerosas, ludibriadas por promessas bambas e notícias falsas. Tudo amplificado pela força dos algoritmos das redes sociais, ambiente no qual a mentira e o digladio sangrento batem recordes de audiência.
Mesmo em declínio, como mostram estudos de diversos pesquisadores e analistas, a democracia continua sendo defendida e almejada mundo afora. No Brasil, 79% acreditam que ela é sempre melhor do que qualquer outra forma de governo (Datafolha, 10/2022). Ainda assim, o país convive com arreganhos golpistas, não só os patrocinados pelo ex, que culminaram com o vandalismo do 8 de janeiro, mas com permissividades que parecem proteger a democracia mas a ferem de morte.
Isso vale para abusos do STF, Corte que se mostrou diligente e essencial no barramento de ações golpistas, mas que extrapola suas atribuições ao impor limites à liberdade de expressão, como no caso das multas ao Google e ameaças de suspensão do Telegram, ou de legislar, chamando para si matérias de competência do Congresso Nacional.
O Executivo também não tem servido de exemplo. Bolsonaro era um autocrata assumido, que adorava falar de liberdade desde que coubesse no contexto de sua conveniência. Por sua vez, Lula, eleito a partir de uma frente ampla em defesa da democracia, tem tropeçado feio nessa seara. Sem maioria legislativa, tenta mudar por decreto ou via ação no Supremo leis recém sacramentadas pelo Parlamento, representação máxima do povo.
Democracia não se faz da boca pra fora. É prática cotidiana – um sistema de convencimento, de pesos e contrapesos, de liberdade e respeito. A torcida é de que sua poderosa aura ilumine os turcos – e a todos nós.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 14/5/2023.