Torcida

Não sei por que guardo badulaques, bugigangas, seja lá o que for, na parte alta dos armários. Aliás, sei. Só pra cair da escada. Não de qualquer uma. Dessas infernais, dobráveis, domésticas, sem as quais não se vive. Dessas que nos fazem tanta falta que, um dia, deixam as vitrines das lojas e se instalam definitivamente em nossas casas.

Aí, como se jamais tivessem intenção de fazer mal a alguém, passam a vida inteira passivas, encostadas em um canto qualquer. Espaçosas, silenciosas. Quase inofensivas.

Verdadeiras ameaças, dia e noite nos espionam e, se um tropeção distraído chega a atingi-las, podemos dar graças aos céus quando não despencam sobre nossas cabeças.

Há umas duas ou três semanas, dei graças aos céus.

Impedida de sair para trabalhar por causa de uma gripe que resistia às receitas caseiras de mel, limão e gengibre, comecei a reparar mais em minha casa. Nos primeiros dias, tudo bem. Organizei livros, arrumei gavetas, objetos, papéis. Atualizei agendas, reli cartas, revi fotos, conferi receitas, refiz apontamentos. Revivi saudades.

Depois, aos poucos, do assoalho ao teto, defeitos e falhas foram surgindo. Pisos arranhados, paredes marcadas, portas descascadas, tapetes manchados, móveis faltando, sobrando, incomodando.

Tenho de mudar alguma coisa nessa casa, pensei, logo que me senti melhor.

Sem saber por onde começar, meus pensamentos vagavam sem rumo, enquanto meus olhos se fixavam na parte superior do armário do meu quarto, há tempos inexplorada.

– Vou precisar da escada, pensei, em voz alta, sozinha, quatro da tarde, filhos no trabalho, sem gripe, sem móveis faltando, sobrando. Nada incomodando.

Apática e estática, lá estava ela, atrás da porta. Área de serviço. Carreguei-a até o quarto, calmamente, cuidando pra que não esbarrasse em portas e paredes. Nem tropeçasse em mim.

Frente ao armário, com firmeza, ajeitei, no assoalho de madeira, seus quatro pés emborrachados e, quando tive certeza de que nem eles nem eu escorregaríamos, subi. Três degraus. Degrauzinhos de nada, só três. Escadinha de nada, leve, fácil, inofensiva.

Minha tarefa nada tinha de difícil. Tarefazinha de nada. Abrir o armário, tirar badulaques, bugigangas, fosse lá o que fosse, e jogar sobre a cama. Só isso. Com um detalhe. Entre tirar e jogar, por causa do espaço reduzido, a escada colada ao armário, eu teria de eu fazer uma torção do tronco. Torçãozinha de nada, treinada em academias, aqui e ali. Brincadeira.

Lá pela quarta ou quinta torção, aquela, brincadeira, de nada, perdi o equilíbrio e caí como caem os tenistas, de pé. Pé torcido, virado, desligado.

Sentindo-me torcida da cabeça aos pés, como se tivesse um lado só, torci para que a escada voltasse ao seu canto. Sumisse. Me deixasse.

Ficou lá, espionando. Ameaçando.

Olhos fechados, tentei fazer de conta que ela não estava no quarto. Estava. Como se o quarto fosse dela. Tentei imaginar que badulaques e bugigangas não se amontoavam sobre a cama. Amontoavam-se. Como se a cama fosse deles.

– Mãe! O que essa escada tá fazendo aqui, no meio do quarto, a essa hora?

– Ah, você nem vai acreditar! Fui arrumar o armário, e…

– Você não acha que tá passando da hora de começar a ter juízo, mãe?

Pensei em lhe dizer que, pé e tornozelo já devidamente torcidos e doídos, juízo pra quê?

Melhor mudar o assunto. Ligar a tevê, torcer. Jogo do Galo.

Ah, antes, tirar a escada. O Galo não anda ameaçado de cair? Melhor tirar a escada.

As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial).

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