Quando morre um imortal

Quando morre um imortal, os mortais pensam na morte ou dela fogem como o diabo da cruz. Já fugi dela, mas com as mortes de familiares, amigos e amigas se sucedendo sem fim, desde a minha infância e juventude, acabei com ela me acostumando. De modo que tenho alguma coisa a pensar e dizer, após tantas aparições.

A primeira coisa que penso é não culpar a morte. Ela não tem nada com isso. Está cumprindo seu papel. Uma senhora discreta que de vez em quando aparece não merece que falemos mal dela. Devemos tratá-la com respeito e eu diria até com certa benevolência, por levar embora um ingrato ou abreviar a dor de quem sofre sem remédio. Só não gosto da morte quando aparece repentina, vinda de trás de uma cortina que há pouco esvoaçava delicadamente aos ventos do verão e agora cai pesada como um manto de chumbo.

A segunda coisa que penso é fazer da morte um par. Não como a nossa namorada ou nossos amores, mas como a sombra que projetamos no chão ao sol do meio-dia. Vá lá, a qualquer hora do dia… desde que haja luz solar para nos assombrear, se me permitem o termo. Não temos medo da nossa sombra – pelo menos a maioria não deve ter – e assim como não a tememos não devemos temer a morte.

A terceira coisa que penso sobre ela é que se trata de uma intrusa que se aboleta em nossa casa sem a menor cerimônia. Muitas e muitas vezes aparece sem pedir licença e vai se chegando. Mas é um engano. Temos mais bactérias capazes de nos matar em segundos do que células vivas em nossos corpos. Basta somente algumas saírem do lugar para dar um passeio por outras bandas, e estamos fritos. A morte está abancada dentro de nós, pelo corpo inteiro. Nosso intestino é um repositório de assassinos vorazes que deglutem nossos prazeres culinários até não restar mais nada, a não ser um bolo fecal que expelimos por instinto. Mas sem esses serial-killers sedentos e esfomeados nós não estaríamos vivos. Fazem a alquimia fantástica de transmutar o que comemos em vida para nós. Arrisco dizer, conforme a lógica aristotélica elementar, que a morte é condição para a vida.

A quarta coisa que penso é que devemos conviver com ela num local reservado e pré-determinado de comum acordo, de modo que não nos atrapalhe em nossos fazeres e desfazeres de cada dia.

E para pôr em prática esse pensamento, como quinta resolução, toda noite rezo por ela e pelos que se foram com ela para mundos distantes. Sim, acredito que há outros mundos neste universo sem fim e que é uma afronta à lógica aristotélico-tomista – e mesmo à lógica hegeliana, kantiana e wittgensteiniana, mais modernas – achar que a Terra é nossa única residência.

Aproximando-me do fim, a sexta coisa que penso dela é que se trata de uma ponte entre o finito e o infinito. Uma pinguela frágil entre o visível e o invisível. E que o imortal Pelé, que aqui me motiva, estará feliz de nos ver com todas as homenagens que lhe fizemos, a dizer com seu sorriso infantil que nós mortais somos imortais como ele. À nossa maneira, não à do Rei, que como ele não houve nem haverá. Mas à maneira de cada um.

Por fim, o sétimo selo desta carta diz respeito à ausência. Esta é brutal. Sobre ela ou contra ela não existem argumentos. Não tem remédio nem consolo. É onde nossa condição humana esbarra, muda e quieta, numa muralha. E, parafraseando Wittgenstein, encerro estas linhas dizendo que do que não se pode falar, deve-se calar.

Nelson Merlin é jornalista aposentado        

Janeiro de 2023

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