Na próxima quarta-feira o STF volta a se debruçar sobre as emendas do relator, vulgo orçamento secreto. Abjeto, imoral e inconstitucional, o arranjo que permite distribuir bilhões dos impostos dos cidadãos sob o cobertor do anonimato é tratado com impressionante normalidade no meio político. Por criadores e beneficiários – o presidente Jair Bolsonaro e os parlamentares do Centrão sob o comando do presidente da Câmara Arthur Lira -, e pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. No caso de Lula, a promessa feita na campanha de detonar o mecanismo morreu na praia da governabilidade, em nome da qual o país, há décadas, institucionaliza absurdos.
Invencionice nacional, o orçamento sigiloso – parte dele, e apenas parte, revelado após exigência do Supremo – previu R$ 16,5 bilhões para 2022, R$ 7,7 bilhões ainda não executados, gentilmente incluídos na PEC da Transição negociada por Lula e aprovada pelo Senado. Para 2023, as emendas do relator batem em R$ 19 bilhões.
A PEC da Transição aprovada em dois turnos por 64 dos 81 senadores reserva recursos de R$ 145 bilhões fora do teto de gastos para cumprir as promessas de Lula de manter os R$ 600 do Bolsa Família – também feita pelo candidato Bolsonaro, mas não contemplado no orçamento que seu governo enviou ao Congresso -, acrescidos de R$ 150 por criança até 6 anos. Além de recursos para outros programas sociais como o Farmácia Popular e merenda escolar, zerados por Bolsonaro.
Gente do Centrão não se inibe em dizer que a aprovação do dinheiro extra teto está atrelada à manutenção do orçamento secreto. E que o jogo seria o mesmo se o eleito tivesse sido Bolsonaro, há muito refém dessa turma.
Para o atual presidente, o instrumento espúrio que ele chegou a vetar por flagrante inconstitucionalidade e logo em seguida ressuscitar por iniciativa própria, era essencial para se proteger da centena e meia de pedidos de impeachment que Lira, satisfeito com a bufunfa, manteve adormecidos na gaveta. Para o futuro, a chantagem também é clara: ou Lula mantém as emendas do relator ou a PEC em curso emperra.
O mais incrível é como as negociações são feitas. Sem qualquer escrúpulos há políticos ameaçando o Supremo caso a Corte decida pela inconstitucionalidade da matéria. Contra à Carta Magna e, como de costume, em favor de Bolsonaro e dos próceres do Centrão, até o parecer da Procuradoria-Geral da República foi a favor da manutenção da excrescência.
Na Câmara, depois de compromissos não cumpridos de transparência, Lira e os seus, que estão cansados de saber que o sigilo com dinheiro público é ilegal, tentam convencer o STF de que é possível manter as emendas do relator com nome e sobrenome, algo em que ministro algum crê. Lira acena ainda com um projeto para institucionalizar de vez a aberração.
No STF, parte dos ministros, entre eles a presidente da Corte e relatora da matéria, Rosa Weber, quer acabar logo com a pendenga. Outros preferem adiar o voto para que a discussão não contamine as negociações do Parlamento com o novo governo sobre a PEC da Transição, escancarando a força maligna do orçamento secreto que permeia todos os poderes.
Por sua vez, Lula tem dito que as emendas do relator que ele tanto execrou na campanha têm de ser solucionadas no âmbito da Justiça. Safo, gostaria de tê-las como instrumento de negociação para obter maiorias que lhe serão difíceis nas duas casas legislativas. Mas adoraria vê-las enquadradas pelo STF, preferencialmente limitadas a um valor menor e com um tiquinho de transparência.
Na real, o orçamento secreto é um artifício semelhante ao Mensalão, oficial e mais azeitado, vergonhosamente admitido pelo pragmatismo político em nome da governabilidade.
Pobre do país em que a governabilidade depende de práticas hediondas e permissivas à corrupção, de maiorias legislativas compradas com dinheiro dos impostos do cidadão, de política troca-troca de baixo calão. Perto disso, a tristeza de cair nas quartas de final da Copa do Mundo é fichinha.
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 11/12/2022.