Inês mostra que tem talento já de cara não apenas no primeiro texto que publica na vida, mas até mesmo no “quem é”, a minibiografia que o orientador do curso de Escrita Criativa, Marcelo Spalding, encomendou a ela: “Inês Lemos da Luz nasceu no Rio de Janeiro, foi para São Paulo com 5 anos. Filha de jornalistas, o som da máquina de escrever é o fundo musical da sua infância nos anos 70.”
“O som da máquina de escrever é o fundo musical da sua infância nos anos 70.” A frase é tão deliciosa quanto verdadeira. Eu sei porque o som da Olivetti que ela ouviu a partir dos 5 anos vinha, em boa parte, dos meus dedos. Aconteceu de Inês, filha dos jornalistas Regina Lemos e Heitor da Luz, ter também um padrasto jornalista dos 5 anos em diante.
Levou uns 40 anos para me revelar que, em segredo, escrevia. “Nunca tive coragem de mostrar pra ninguém algo que escrevi. Estou tentando superar isso”, me contou uns dias atrás a danadinha. “Mostra também pra Mary.”
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Não que o Português perfeito, escorreito, tenha me surpreendido – apesar de ela estar fora do Brasil há 30 anos. Disso aí eu não tinha dúvida, não.
Mas a riqueza das frases… A firmeza da narrativa. O encadeamento entre uma idéia e outra. A preciosidade das imagens…
“O telhado aqui em questão era novinho em folha no ano 1881. Protegia das chuvas e do calor carioca cabeças que sonhavam um Brasil sem imperador, sem escravidão, um estado laico onde as mulheres teriam direito ao voto. Eles não só sonhavam, agiam também.”
“Pensando naqueles não-raio e não-bomba, na falta de ação violenta súbita, espanta a outra violência, terrível, sistemática, paciente, do descaso e do abandono. Em algum outro país deste mundo, o templo seria um museu, testemunha atemporal dos valores humanistas de uma nação nascente.”
Ah, meu, isso não é coisa de principiante.
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Mas é a tal coisa. O Português irretorquível é fundamental. A beleza da forma é uma maravilha, um deleite. Mas se, além do deleite da beleza formal, há por trás um conteúdo sólido, aí então a coisa passa para um outro nível.
Em um dos primeiros textos que teve a coragem de expor ao orientador no curso de Escrita Criativa, Inês conseguiu o encanto de fazer uma admirável alegoria. Juntou um fato real ocorrido 12 anos atrás no templo positivista do Rio de Janeiro e o transformou numa metáfora com o roubo das cores, dos símbolos, da bandeira nacional pela extrema-direita que o bolsonarismo fez a sair do esgoto em que se escondia.
Isso me impressionou demais no texto “O telhado caiu”.
Porque eu sou um sujeito de texto, eu ganhei a vida inteira o pão com o que sei sobre texto – e, no entanto, meu texto é um troço bem chão. Talvez o povo que acredita em horóscopo tenha alguma razão, afinal, porque sou Capricórnio, sou terra, chão, e meu texto é assim também: meu texto é chão. Ele não sabe levantar vôo. Voar não é com ele. Nos filmes, adoro ver imagens feitas com a câmara no alto de gruas, hoje em dia bem mais lá em cima, carregadas pelos drones – mas meu texto, no máximo, no máximo, quando consegue se soltar, nos seus melhores momentos, anda com a leveza de uma câmara que se move nos trilhos, como um travelling em um filme não digo de um Hitchcock, mas quem sabe de um Brian De Palma em seus primeiros dias…
Inês conseguiu fazer uma alegoria que é bela, e poderosa, e triste, entre o telhado de um casarão do final do século XIX na Rua Benjamin Constant, na Glória, provavelmente o mais belo bairro daquela cidade cuja marca é a maravilha, com a civilidade que tem despencado nestes últimos quatro anos.
Mas há ainda um outro elemento neste “O telhado caiu” que me encantou – e esse só é perceptível para os que conhecem essa criatura admirável que é a autora.
Ao falar do Templo da Humanidade, Inês estava seguindo à risca aquela lição de Liev Tolstói – “Se você quer ser universal, fale de sua aldeia”.
O Templo da Humanidade, o templo da Igreja Positivista no Rio de Janeiro, na Rua Benjamin Constant, fica a poucos metros do casarão – tão antigo quanto ele – em que Inês passou os 5 primeiros anos de sua vida. O casarão que era da família do pai, o jornalista Heitor da Luz. Heitor descendia de positivistas da primeira hora.
Quando Inês me mandou lá de Munique “O telhado caiu”, eu disse para ela que Heitor e Regina estavam orgulhosos dela – e Mary e eu também.
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Como tudo na minha vida, segundo pontificou judiciosamente Fernanda, vira texto – pelo menos desde que me aposentei após uns 35 anos em que ganhei a vida por dar uma acertadinha, se possível uma melhoradinha no texto dos outros, e passei a escrever louca, desesperadamente, os meus próprios textos –, me lembrei de uma historinha e fui logo anotando.
Lá vai.
Regina tinha saído de casa. Abandonado o lar, como se dizia nos samba-canções. Cascado fora. Mas continuávamos, de uma maneira um tanto esquisita (awkward seria uma expressão perfeita, acho, se a nossa novela fosse uma soap opera da TV americana), namorando. Ao mesmo tempo em que, evidentemente, estávamos abertos a namorar todo mundo que quiséssemos.
Na verdade, antes mesmo da separação, da saída de casa, do abandono do lar, já estávamos abertos a outros namoros, já que éramos jovens e portanto um tanto tolos, um tanto sábios, e muito corajosos. Mas isso não interessa.
Interessa aqui é que teoricamente não deveríamos sentir ciúmes dos casos de cada um. Especialmente, é claro, depois que já havíamos nos separado.
Não cabia ciúme.
Aí um dia Regina, em visita à casa que havia sido nossa e então era só minha, deu com livro evidentemente novo, que ela não havia visto ali ainda. Pegou, abriu, leu a dedicatória.
Tinha sido presente da moça que eu estava namorando. Regina sabia quem era a moça – e a moça era tremenda, absoluta, estonteantemente linda.
Não era, no entanto, das teclinhas. Não ganhava a vida com texto.
Dias depois dessa visita, Regina, a que jurava de pé junto que não tinha ciúme, me deixou um longo bilhete-carta que, em uma hora lá, dizia: “Bem-aventuradas as pessoas que têm bom texto.”
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Sua mãe nisso aí tinha toda razão, Inês querida. Bem-aventuradas as pessoas que têm bom texto.
Outubro de 2022
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