O telhado caiu

O telhado caiu. Ou será que foi caindo aos poucos? Afinal, sem ação súbita de terremoto, vulcão, raio, bomba ou outros projéteis violentos, telhados tendem a ir caindo aos poucos. O telhado aqui em questão era novinho em folha no ano 1881. Protegia das chuvas e do calor carioca cabeças que sonhavam um Brasil sem imperador, sem escravidão, um estado laico onde as mulheres teriam direito ao voto. Eles não só sonhavam, agiam também. Os positivistas exerceram enorme influência na construção da república que nascia na última década do século XIX.

Criaram também seu símbolo pictórico máximo, a bandeira brasileira. De chinelos a cangas de praia, passando pelo Congresso Nacional e a Suprema Corte, aterrissando nos longínquos campos de futebol do Oriente Médio, ele representa em poucas cores e formas geométricas o país a que pertence. Imediatamente reconhecido por qualquer brasileiro em todas as partes do planeta. Poderíamos falar aqui de semiótica, assunto interessantíssimo, mas vamos falar de um crime: a bandeira brasileira foi roubada.

Porque o telhado do templo positivista onde ela estava guardada desde 1889 desmoronou, lentamente, ao longo das décadas de mais de um século. Pensando naqueles não-raio e não-bomba, na falta de ação violenta súbita, espanta a outra violência, terrível, sistemática, paciente, do descaso e do abandono. Em algum outro país deste mundo, o templo seria um museu, testemunha atemporal dos valores humanistas de uma nação nascente.

Caiu parte do telhado, em 2009. Em 2010, um ladrão entrou pelo buraco e roubou, de dentro de uma caixa de madeira guardada no porão, a pintura – protótipo da bandeira brasileira, a primeira bandeira que existiu no país. Tela de Décio Villares, ela é a versão pintada em cores dos desenhos de Teixeira Mendes, que juntamente com Miguel Lemos desenvolveu a ideia original. A primeira bandeira de tecido foi costurada pelas mulheres da família de Teixeira Mendes, na sala de sua casa.

A princípio amor, ordem e progresso, restou no centro da abóbada celeste ordem e progresso. Amor não combina com bandeira, nação, tira isso aí, resolveu o congresso da época. Pois bem, está faltando a base. Segundo os positivistas, já praticamente extintos, a humanidade deve ter o amor por base, a ordem por meio e o progresso por fim. Ficamos com a ordem e o progresso. Só rindo. Ficamos, como manda a fama que temos pelo mundo afora, rindo; que é, muitas vezes, mal sabe o mundo afora, para não chorar.

A Interpol foi acionada pela Polícia Federal brasileira para ajudar a achar a bandeira roubada. Nada dela até agora, em 2022. Nós, que não temos treinamento na Interpol, ficamos imaginando, quem foi esse ladrão, que sabia da existência da primeira pintura da bandeira brasileira, guardada numa caixa de madeira no porão de um templo semi desabado. Ele levou somente a tela, a caixa de madeira ficou vazia. Sabia bem o que buscava.

4380 dias. Quem roubou a bandeira brasileira?

Este texto foi originalmente publicado no site Escrita Criativa, de Marcelo Spalding.

Nas fotos, o templo positivista na Rua Benjamin Constant, na Glória, Rio de Janeiro – a do alto foi feita no início do século XX, esta aqui já é dos anos 2000.

(*) Inês Lemos da Luz nasceu no Rio de Janeiro, foi para São Paulo com 5 anos. Filha de jornalistas, o som da máquina de escrever é o fundo musical da sua infância nos anos 70. Mora em Londres com 17 anos, na Alemanha a partir dos 21. Desde então, lá se vão 30 anos, continua por lá, sempre com saudade do Brasil. Tem 3 filhos adultos e trabalha como professora e teatro-pedagoga em Munique.

2 Comentários para “O telhado caiu”

  1. Inês, seu texto é uma maravilha. Precioso relato histórico, com fatos que eu sequer imaginava, escrito de forma precisa mas agradável. É o que chamamos tudo de bom. Espero por outras colaborações suas neste espaço.

  2. Adorei! Assim como o Valdir, vou ficar muito feliz em ler outros textos seus aqui, Inês! Beijo grande.

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