A já sabida inexistência de provas de fraude nas urnas eletrônicas, a repetição da falácia de que o STF o impediu de agir contra a pandemia e outras tantas mentiras ditas seguiram o padrão de sempre. O que surpreendeu na live de quinta-feira de Jair Bolsonaro foi a alteração do figurino, desta vez incluindo 25 jornalistas que, mesmo impedidos de perguntar, ou seja, de exercer seu dever de ofício, deram publicidade à patética narrativa do presidente. A novidade expôs o esgotamento do modelo da transmissão semanal de suas baboseiras ao público cativo das redes sociais.
Seguindo o exemplo do ídolo Donald Trump, para quem governar era tuitar, Bolsonaro, tutelado por seus zeros, tentou fazer o mesmo: nomear e demitir pela rede, disparar impropérios, estender e puxar tapetes de aliados, xingar adversários. Mas nem o estímulo ao ódio, algo que faz sucesso nesses canais, nem os quase 11 milhões de seguidores no Facebook e 7 milhões no Twitter têm sido suficientes para segurar a queda livre de popularidade do presidente, rejeitado por 51% da população.
Isso corrobora com a derrubada de alguns mitos que dão às redes poderes que elas até parecem ter, mas que não se confirmam.
Em termos eleitorais as redes imputaram fracassos estonteantes a candidatos que confiaram no sucesso dos likes. Os impressionantes 88 milhões de seguidores que Trump alcançou no Twitter não conseguiram derrotar um Joe Biden com presença 10 vezes menor. Alberto Fernández, atual presidente da Argentina, não tinha mais de 30 mil seguidores no Twitter quando enfrentou Mauricio Macri. Pedro Castilho, recém-eleito presidente do Peru, aparecia com apenas 3 mil seguidores no início da campanha, 79 mil no final, contra mais de um milhão de Keiko Fujimori.
Mesmo Bolsonaro, que se jacta de ter vencido as eleições de 2018 pela força das redes, sabe que a combinação do antilulismo com a exposição maciça do atentado a faca na mídia convencional rendeu mais votos do que a militância nas redes sociais. Não à toa, repetiu a vitimização ao se ver premido pela CPI da Pandemia e a cada dia mais distante da reeleição.
Fortíssima para mobilizar em torno de uma causa – a Primavera Árabe e as jornadas de junho de 2013 no Brasil são prova disso -, as redes impressionam pela velocidade com que conseguem multiplicar uma mensagem, verdadeira ou não. Sua audiência é retroalimentada ou expandida pelo noticiário. A ativista Greta Thumberg, hoje com milhões de seguidores, nada conseguiria se a imprensa sueca não desse destaque ao seu protesto solitário contra a inação dos governos diante das mudanças climáticas. As ruas contra Bolsonaro ou as motociatas a favor do presidente são convocadas pelas redes, mas os dois lados reivindicam a chancela da imprensa, acusada pelas torcidas de omissão ou engajamento.
Não raro, a audiência de temas políticos nas redes é comemorada como crescimento de participação popular. Recentemente, os 23 milhões de engajamentos nos três meses de funcionamento da CPI da Pandemia no Senado foram tidos como um marco de mobilização em torno das investigações. Na ponta do lápis, as 255,5 mil interações ao dia são 180 vezes menores do que a média de 45 milhões de espectadores do Jornal Nacional.
Embora moldadas a partir da interatividade, nas redes o debate político costuma ser binário, mais raso do que um pires, sem qualquer espaço para moderação. Nelas vence o meme engraçado, mesmo que mentiroso, quando não as práticas de cancelamento, que julgam de forma draconiana o outro, expelindo-o do convívio com os demais. Permitem ainda que os usuários postem uma coisa e façam exatamente o oposto, como aconteceu há pouco com a deputada Bia Kicis (PSL-DF) e o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) em relação ao fundão eleitoral de R$ 5,7 bilhões, que eles condenaram veementemente no ambiente virtual e aprovaram em plenário.
Depois de mais de uma década de encantamento com as redes sociais, sabe-se hoje que elas têm servido mais para desestabilizar as democracias do que para construir caminhos virtuosos. São usadas e abusadas por Trumps e Bolsonaros para construir narrativas, “verdades alternativas” e universos paralelos. Ainda assim, na live de quinta-feira, o presidente escancarou que a audiência que consegue nelas é insuficiente para as suas pretensões.
Bolsonaro, que sempre que pode escorraça e expõe seu ódio aos jornalistas, se rendeu à imprensa. Precisa dela para tentar ecoar para fora dos limites da Terra plana. Resta saber se ela vai se prestar a esse papel.]
Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 1º/8/2021.
Não sabia da convocação dos jornalistas para a live. Agora sentiu o peso do seu desprezo pela imprensa, mas as besteiras continuam as mesmas . Artigo muito elucidativo.