Enfim chega o dia D. O primeiro cidadão brasileiro a receber a vacina, um tiozinho simpático, dessas pessoas que por nada aparentam intensa felicidade, está a postos. A cena se dá em um palanque erguido em frente ao Palácio do Planalto. Ao lado do homem, vê-se a enfermeira, conferindo o medicamento e a seringa, que repousam em uma pequena mesa. Ali está, também, um pequeno estojo, fechado.
Eis que surge o presidente, acompanhado do ministro da Saúde. Explodem os acordes do Hino Nacional, executado pela banda dos fuzileiros navais, perfilada a poucos metros. Bem ali está, também, o cercado com os repórteres fotográficos e cinematográficos.
O presidente faz um breve discurso, destacando seu desmedido empenho para a compra e viabilização da vacina. E chega a hora. O felizardo se aproxima da mesa, com ar de quem ganhou na loteria. Ergue a manga da camisa. A enfermeira vem com a seringa e aplica a injeção.
Nesse momento, o ministro Pazuello pega o estojo sobre a mesa. Sem entender o que se passa, os fotógrafos e cinegrafistas apontam suas câmeras. É o ponto alto da cerimônia. Pazuello abre o estojo e dele retira uma medalha de Honra ao Mérito. Passa-a para o vacinado e este, cumprindo o script, faz sua parte. Condecora Bolsonaro.
Em São Paulo, no dia seguinte, o governador João Dória por pouco não desiste do ato programado para a aplicação da vacina – pois perdera o pioneirismo que vinha alardeando há tempos. Depois de reclamar de trapaça do presidente, resolveu abrir as vacinações com apenas um discurso de desagravo.
Mas, quer saber? Manteve a programação. Palanque, bandeiras do Brasil e de São Paulo, claque. Teve discurso, a enfermeira aplicou a vacina diante de grande público que, no momento da picada, comemorou como um gol. Dória ergue uma réplica de seringa do tamanho da taça da Copa do Mundo, com o mesmo gesto que consagrou Bellini em 1958. O público vibra, menos uma senhora que segura um pedaço de algodão no ombro, atordoada pelo que está acontecendo.
14 de janeiro de 2021