A diplomacia nos tempos Beato Salu

Imaginem qual será o nível da boa vontade de Joe Biden com o governo brasileiro. Bolsonaro foi uma dos poucos chefes de Estado a não condenar a tentativa de golpe nos Estados Unidos. Seu governo não pronunciou uma mísera palavra sobre o atentado ao Capitólio.

Em vez disso, reafirmou sua devoção a Donald Trump – a quem disse continuar ligado – e se apropriou do discurso trumpista, com a cantilena de que a eleição americana foi fraudada. Sem o menor respeito às normas que devem reger as relações entre países, entre as quais princípio da não ingerência, amplificou: “teve pessoas que votaram até quatro vezes e até morto votou”

A miséria da diplomacia brasileira ficou estampada no twitter de Ernesto Araújo. Em vez de se manifestar oficialmente e de condenar, sem meias palavras, o auto-golpe de Trump, o ministro das Relações Exteriores foi às redes sociais para fazer um comentário sibilino que, na verdade, passa o pano nos golpistas insinuando que o atentado foi coisa de infiltrado democrata. E protestou porque os terroristas invasores do Capitólio estão sendo chamados de fascistas.

Dá bem para se ter uma idéia das dificuldades estando o diálogo entre os dois países nas mãos do ministro que diz tais sandices ou do embaixador Nestor Foster, que, em seus informes ao presidente, espalhou desinformações e, para agradar a Bolsonaro, deu argumentos à teoria fajuta de que houve roubo na eleição americana.

Bolsonaro e Ernesto completam assim o ciclo da insensatez. Já tinham criado indisposição com a China e os países da União Européia. Agora colocam o Brasil em desgaste com o governo do novo presidente dos Estados Unidos, cuja posse acontecerá no próximo dia 20. Uma agressão à boa tradição da política externa brasileira.

O Itamaraty sempre foi um centro de excelência, reconhecido mundialmente por seu alto nível de profissionalismo, pela formulação de uma doutrina diplomática pautada na defesa dos interesses do Brasil e no exercício do soft power. É assim desde os tempos de Juca Paranhos, o Barão de Rio Branco, quando, pela via da negociação, nosso país incorporou o Acre, ampliou seu território no oeste de Santa Catarina e assegurou  a soberania sobre o Amapá.

Mesmo no período da ditadura militar, o Brasil construiu uma política externa altiva, sendo o primeiro país a reconhecer a independência das colônias portuguesas da África. O pragmatismo responsável da era Geisel.

Nomes de envergadura como San Tiago Dantas, Fernando Henrique Cardoso, Osvaldo Aranha, Azeredo da Silveira, Saraiva Guerreiro, Afonso Arinos, Afrânio Melo Franco estiveram à frente da política externa brasileira. Celeiro de quadros, o Itamaraty produziu diplomatas da qualidade de um Rubem Ricúpero, Rubens Barbosa, Roberto Abednur e Celso Amorim. Assim, projetou o Brasil no cenário internacional, tendo como sua grande marca a formulação de uma política de Estado que não mudava conforme o governo de plantão.

O verbo vai no passado porque sob o comando de Ernesto Araújo – a quem seus próprios pares do Itamaraty apelidaram de Beato Salu, o personagem da novela Roque Santeiro que perambulava pela cidade anunciando o fim do mundo – a política externa virou política de governo, ditada pelos valores ideológicos do bolsonarismo. A própria ascensão de seus quadros deixou de se dar pela meritocracia. O critério passou a ser o da “identidade ideológica” ou da bajulação.

O produto da política externa de Araújo foi a redução do Brasil a uma péssima condição no cenário internacional, da qual o ministro se jacta. Ela conseguiu a proeza de levar o país a se indispor com o principal parceiro comercial, a China, e de ficar mal na fita com o presidente eleito dos Estados Unidos, nosso segundo parceiro comercial.

Nossa imagem no exterior é de um país destruidor do meio-ambiente, enquanto éramos uma referência mundial desde a Eco 92.

Nada de bom poderia sair de um ministro que se guia pela lógica do conspiratório, que via em Donald Trump a salvação da civilização judaico-cristã; que crê em uma guerra permanente contra o “globalismo maoísta”.

O Brasil ficou de fora da reunião de 80 chefes de Estado e de governo promovida pela ONU para preparar a Conferência sobre os cinco anos do Acordo Paris. Até a undécima hora Araújo fez de tudo para Bolsonaro participar do evento. Foi inútil. Infelizmente, considera-se que o Brasil não tem nada a acrescentar em relação à questão climática.

O vexame maior veio no Senado, onde a indicação do embaixador Fábio Marzano para chefiar a missão brasileira na ONU foi rejeitada por goleada. É um episódio inédito que só tem precedente no governo Dilma Rousseff já na sua fase terminal, quando uma indicação sua foi rejeitada. Marzano é aquele diplomata que em uma conferência na Polônia defendeu a incorporação da religião na política externa brasileira.

A derrota humilhante do indicado pelo ministro do Exterior vem sendo chamada por diplomatas de o “7 a 1 do Beato Salu”.

Não há a menor condição de ele continuar à frente do Ministério do Exterior. Os militares querem sua cabeça, o agronegócio endossa o coro e os senadores mandaram um recado claro. Mas Bolsonaro resiste às pressões. Ernesto Araújo é inabalável porque sua cabeça é a do presidente. Mais do que isso: caiu nas graças do clã presidencial. Toda vez que Eduardo Bolsonaro diz uma enormidade e nos atrita com a China, o ministro sai a campo para respaldá-lo.

Na novela Roque Santeiro o Beato Salu entrou em coma por 33 capítulos, ressuscitou dizendo “mais forte são os poderes de Deus”. Já o Itamaraty está em coma há 24 meses e não sairá dele enquanto o seu Beato Salu sobreviver.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, na Veja, em 12/1/2021.

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