Era uma vez um vírus chamado Hitler. Em 1943, dava já tão mau nome aos vírus, que mesmo alguns dos seus subordinados o queriam matar. Hitler tinha vindo a Smolensk, cidade russa, saborear mais um viral ataque das suas tropas. O general Henning von Tresckow recebeu-o, cordato pela frente, indignado nas costas. E pediu a um dos acompanhantes de Hitler que levasse no avião, de volta, um pacote com garrafas de conhaque para um amigo, que trabalhava no quartel general de Hitler, em Berlim. Era a bomba que deveria explodir no avião e liquidar o vírus nazi.
Deus põe ao menino a mão por baixo? Também o diabo, que o imita e dá colo a quem, como escreveu Jorge de Sena em carta ao capitão Sarmento Pimentel, por ser “filho da puta é sempre da puta filho.” O pacote do bombástico conhaque foi para o porão do avião e as baixíssimas temperaturas gelaram e incapacitaram os fusíveis que deveriam fazer explodir a bomba.
O general Tresckow mandou resgatar o pacote a Berlim. Se Hitler saiu incólume, incólumes saíram também os conspiradores, prontos para reincidir. Outro dos oficiais indignados era o aristocrático major-general Rudolf von Gertsdorff (na foto), formado na Academia Militar da Prússia. Hoje, os historiadores e mesmo nós, ex-frequentadores de cafés e de uma ou outra cervejaria, podemos perguntar-nos se o que inquietava Gertsdorff era uma revolta de consciência, ou se, ciente dos crimes nazis e antevendo a derrota, queria só salvar a pele no futuro.
A acção a que Gertsdorff se cometeu é auto-explicativa. A miserável história do avião fora há oito dias e Hitler vinha agora, dia 21 de Março de 1943, visitar uma exposição de armas capturadas aos soviéticos. No Arsenal, avenida Unter den Linden, o equivalente ao nosso Museu Militar. Gertsdorff seria o guia. Ofereceu-se a Tresckow para uma missão suicida: armar-se de explosivos, abraçar o vírus Adolf e acabar-lhe com a cadeia de contágio. Morreria, mas mandava o vírus para o inferno que o parira. Precisava de dez minutos.
Há em todo o herói um desarvorado grão de ambivalência. Gertsdorff, e também o general Tresckow, tinham sido coniventes, feito a guerra de Hitler e sabiam dos crimes. Calaram, vergados à lealdade hedionda. Mas queriam resgatar a velha honra militar. Mesmo à custa da vida.
Gertsdorff ouviu o estardalhaço da comitiva a chegar. Vinha Hitler e vinham Goebbels, Himmler. Correu à casa de banho para accionar os explosivos. Feito. Agora, faltavam dez minutos para haver resquícios de Hitler esparramados nas paredes. Com sorte, de Gobbeles e Himmler também. Sorriu-lhes, quis mostrar-lhes devagar as armas, mas um moscardo infecto deve ter mordido Hitler. Passou por tudo como cão por vinha vindimada e foi falar para o púlpito. Gertsdorff respirou fundo. Os discursos invertebrados de Hitler demoravam horas. Mas eis que Hitler se cala e ala que se faz tarde. Tinham passado oito minutos e Gertsdorff, bomba armada, estava prestes a explodir sozinho e sem glória. Tenta desarmar num minuto os explosivos. Consegue no último segundo.
Gertsdorff, para fugir a suspeitas, avançou para a Frente Leste e foi ele que descobriu o genocídio do outro vírus, Estaline: os corpos dos polacos exterminados pela NKDV, a PIDE comunista, em Katyn. Vinte e dois mil oficiais, soldados, intelectuais, artistas e padres polacos, todos fuzilados após interrogatório.
Tresckow persistiu e em 1944 pôs uma bomba na sala de reuniões do quartel general secreto de Hitler. A bomba explodiu, mas o inabalável vírus só sofreu escoriações. Tresckow suicidou-se.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.