O dinheiro é uma abstracção. Mas ao contrário das outras abstracções, o dinheiro dá um jeito do caraças. Mesmo a Karl Marx, que o desprezava. Marx fincou a boquinha fetichista noutra abstracção, a mais valia, bem mais ao gosto e medida de um filósofo alemão com reputação revolucionária, mas na hora da sopa na mesa deixou de escrever para o New York Tribune porque nem trinta dinheiros lhe pagavam: sem aumento secou-se a prosa.
Abstracção por abstracção, antes servir-se da contábil e graciosa abstracção que o seu amigo Friedrich Engels retirava das fábricas do pai, um grande industrial têxtil e lhe pagava as contas.
E vejam, mesmo sobre a mais cândida das almas, a do poeta irlandês W. B. Yeats, cai a sombra da ganância maléfica. Em 1923, vem um homem dar-lhe a notícia de que ganhou o Nobel da Literatura. O mensageiro quer contar-lhe tudo com a excitação do feirante que tirou a primeira selfie com Marcelo. Yeats interrompe-o: “Oh, homem, páre de arengar, por amor de Deus, e diga-me quanto é que o prémio vale.”
O dinheiro, como Deus, é uma maravilhosa convenção humana. E assume, como Deus, prodigiosas formas. Já foi conchinha, já foi boi, sal, colares, braceletes e anéis, cigarros nas prisões, nesses tempos em que os banqueiros ainda lá não pernoitavam em amenas sabáticas.
A minha idade pré-histórica permite-me relatar acontecimentos dinossáuricos. Como Tarzan. Num dos seus filmes, um guia de safaris corrupto diz ao seu cliente para o seguirem, porque ele sabe onde há ouro que vale milhões. O cliente responde-lhe: “Se Tarzan sabe onde está esse dinheiro todo, porque não compra um par de calças!” Ora, esse cliente piadético não sabe nada de dinheiro, digo-lhe eu que já vivi, numa singeleza de Tarzan, num tempo sem dinheiro – e junto à sonora declaração um enfático “mesmo”. Chamemos-lhe o tempo da troca directa, mercadoria por mercadoria, três peixe-espada com arroz por uma costeleta com batatas-fritas, cinquenta livros por um gira-disco. Permuta, dizemos. Escambo, corrigem os brasileiros. Esquema, era como ternamente lhe chamávamos em Angola.
Já havia dinheiro, vou já adiantando aos mais jovens e distraídos. Mas o dinheiro tinha então, nesses anos de 1975 e 1976, e nas imediações do trópico de Capricórnio, o valor lírico de um verso. Atiravam-se as notas do salário para dentro de uma esquecida gaveta como se punha na estante, ao lado dos Passos em Volta do Herberto Helder, um livrinho de David Mestre, mesmo a Sagrada Esperança de Agostinho Neto. O salário convertera-se à dimensão estética da arte pela arte. Comia-se e bebia-se com engenhosos esquemas de troca directa. O tanque de água para o banho, o gerador eléctrico que enchia de luz a longa e escuríssima noite foram, oh, se foram! esquematizados. Contrabandeadas de Lisboa ou do Rio de Janeiro, cuequinhas de renda negociaram febris madrugadas de amor.
Se alguém quiser sentar-se ao chá com a cleptocracia angolana, dar uma palavrinha de sacristia à acumulação primitiva de capital, ficar escandalizado – abuamado, não é, meus kambas! – com palacetes do Mónaco ou mansões de Barcelona, convém que saiba que, em 1975, Angola começou do zero, da afectiva e pura troca directa, o seu independente namoro com o dinheiro. E só por defeito meu, de inábil pesquisador, não terei ainda visto estudos que certamente escrutinam a desbundante corrupção que o descalabro das economias comunistas, da URSS ao Leste Europeu, sempre gera. Não são só miserabilistas enquanto existem, são também ignóbeis quando acabam.
Da Página Negra, texto publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a velha ortografia.