Só vai quem ainda não morreu

Morávamos quase na esquina de uma agradável avenida de Guarulhos, que corre ao lado do  bosque municipal. Trânsito moderado, uma grande paz. Caminhava-se pela calçada, ao lado do bosque, ouvindo o trinar dos pássaros. A idade nos tirou de lá (casa tem escada), e colocou em um apartamento. Ainda bem!

Não fosse isso, teríamos praticamente no quintal da nossa casa, no sábado, a explosão carnavalesca de milhares de foliões no evento chamado Banda Bicha!  A falsa banda surgiu há muitos anos, como brincadeirinha divertida de rapazes, uma dúzia acompanhando um carro aberto, vestidos de mulher, fazendo gracinha para as pessoas.

Virou show com Cláudia Leitte! Perto de 100 mil pessoas na minha avenida do coração, calculavam os organizadores. Uma barulheira infernal. Ora, diz o ditado. Os incomodados que se mudem. Mudei antes!

Imaginei o tamanho da bicha (falando em português de Portugal) dançando e cantando freneticamente, atrás de um palco com rodas. Subitamente, tive uma crise de condescendência. Poxa, é carnaval. As pessoas têm direito. E essa Cláudia Leitte, é aquela exuberante, de Salvador?

Se ainda estivéssemos na casa, pensei, eu poderia muito bem arriscar um olho. Da janela do  quarto dava para ver um pedaço da avenida. Não, não valeria a pena; pequeno campo de visão. Então sairia à rua e me postaria, discretamente, na esquina. E passaria a Cláudia dançando, se agitando toda, os músicos a mil….

E se eu me empolgasse e fosse junto, só não vai quem já morreu? Sairia dançando e saracoteando, perdesse os limites, na empolgação daria mais do que meu corpo de ancião aguenta…? E batesse com as dez! Olha o vexame para um profissional da imprensa viajado e publicado, conceituado entre os amigos e colegas. Manchete do portal GuarulhosWeb: Sambista morreu na avenida.

Fevereiro de 2020

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